7.23.2016

coisas que fascinam (211)

Jardins

Uma das coisas que eu mais gosto em Sófia são os jardins. Alguns deles são bastante grandes, todos a tender para o selvagem. Normalmente com muitas pessoas, algumas a beber cerveja, outras a andar de bicicleta ou de skate, outras a namorar e algumas a pedir esmola. Nunca gostei de jardins demasiado cuidados, com as árvores sempre podadas e os arbustos a delimitarem áreas como se fossem linhas de soldados incapazes de pensar. No que se refere às mulheres também sou assim. Gosto das desarranjadas e digo-o assim por também gostar de pensar em mulheres como jardins.
Talvez por isso me tenha passeado bastantes vezes por eles, tão sozinho quanto o que se pode estar num cidade com três milhões de habitantes em que não se conhece nenhum. Normalmente em Borisova, com uma garrafa de litro de cerveja na mão e o tempo a passar devagar pela minha pele. Uma vez sentei-me num dos velhos bancos a beber e conheci uma mulher que se sentou propositadamente ao meu lado. Ao contrário do jardim, estava bem arranjada. Falámos um pouco e senti-me ainda mais só.
Podemos pensar que é a conhecer pessoas que se combate a solidão, mas não é verdade. É quase isso, ou seja, conhecendo algumas pessoas. As pessoas são como peças de um puzzle. Algumas encaixam em nós, outras não. E é assim que se começa uma história a dois. Encaixando.
Uns dias mais tarde voltei lá e deitei-me na relva. Foi a primeira vez que reparei que as árvores contavam segredos entre elas sobre as pessoas que passavam. Sobre dois velhos, por exemplo, discutiam sobre há quanto tempo eles vão ali passear abraçados. Sobre um adolescente que patinava num skate colorido, apostavam sobre quando ia ser a sua primeira queda. Acho que as árvores sabem tudo sobre nós. É por isso que não falam. Segredam.
E então segredaram-me sobre uma mulher que passava sozinha. Disseram-me que encaixaria em mim e eu levantei-me e fui falar com ela. Primeiro ignorou-me e depois pediu-me que me afastasse. Depois eu disse-lhe onde ia estar deitado na próxima hora, se ela quisesse voltar. E ela voltou. As árvores tinham razão.
Nesse dia dei-lhe a mão e deixei de ouvir os seus segredos.

7.04.2016

creme Nívea

O taxista estava descalço, sentado no banco do condutor com as pernas fora do carro. Cada uma das suas meias esverdeadas a espreitar dos sapatos como se fossem cobras indianas encantadas com o som duma flauta mágica. Com os dedos das mãos limpava os dedos dos pés, tão concentrado que demorou a perceber a minha presença. Tossi, sem ter tosse para o fazer, e ele olhou para cima semicerrando os olhos como se eu fosse o Sol. Mandou-me entrar e calçou-se apressadamente.
O cheiro do creme Nivea que acabara de passar pela cara, para combater a secura da pele, lembrou-me uma praia portuguesa, uma mão dada à minha namorada e um abraço com a pele tostada. Lembrei-me dos seus cabelos negros misturados com areia e dela a pedir-me que levasse o guarda-sol  amarelo e o abrisse no sítio do costume. Que ingenuidade, sempre pensei que aquele aroma era da praia e afinal é apenas de um creme.
O pára-brisas do táxi amarelo enquadrava uma paisagem de edifícios envergonhados que contrasta com essa memória. Estão degradados e só se mantêm de pé porque é essa a dignidade que lhes resta, manterem-se de pé como velhos equilibrados na ponta de uma bengala, num esforço titânico de quem já passou pela vida toda. Ouvi qualquer coisa em búlgaro que não percebi, mas que supus ser a pergunta normal sobre para onde queria eu ir. Sorri, tirei o meu telemóvel do bolso e mostrei-lhe uma mensagem que recebera antes com a morada dela, em cirílico, e um convite em inglês para aparecer. Preparava-me para me deitar, apesar de serem oito da manhã, pois tinha feito direta a trabalhar.
Tenho que descansar, disse-lhe. Podes descansar comigo, respondeu. E eu tornei-me a vestir e saí de casa à procura de um táxi.
O carro arrancou devagar. No rádio fanhoso ouvia uma música qualquer de chalga que conheço mas da qual não sei o nome. Os edifícios observavam-me em silêncio, como se se perguntassem para onde é que eu ia àquela hora matinal de um Domingo. Tentei recordar-me do cheiro verdadeiro da praia, mas não consegui fugir da memória daquele abraço e do aroma intenso do creme Nivea. Parámos num semáforo, olhei pela janela e decidi falar com eles. Com os edifícios, digo.
É que o Amor não me passa nem quando me falta, disse-lhes.
Atiraram com as bengalas ao chão e disseram-me adeus. Todos eles, até àquele em que eu parei para mandar mais uma mensagem pelo telemóvel. Estou aqui à porta, escrevi. Ela desceu e abraçámo-nos. E de dois que éramos passámos a ser só um, mais um aroma qualquer a uma cidade que cada vez é mais minha.
Talvez daqui a uns anos me lembre deste abraço noutro táxi, noutra cidade, noutro Amor. Que o Amor nunca me passe nem quando me faltar, pensei. E subi.

7.02.2016

olhos

Quando partimos para outro país choramos sempre. Às vezes não em lágrimas, mas quase sempre em silêncio. No princípio o truque é reparar em tudo o que acontece à nossa volta: na criança que vai ao nosso lado no autocarro a abraçar uma boneca, na hospedeira do avião que nos pergunta se queremos mais um copo de vinho ou no polícia de fronteira que nos pede a identificação a sorrir. E nós também sorrimos. Sorrimos com tudo aquilo em que reparamos porque estamos órfãos do resto. E o resto é o mundo.
Ao contrário do que se possa pensar, não se chora por tristeza. Chora-se pelo choque do que a vida é e nunca foi tanto: uma mudança. Sentimo-nos vivos pela primeira vez e isso confunde-nos. E quando não há nada em que reparar perguntamo-nos onde é que estivemos até agora. O que é que andámos cobardemente a fazer na nossa vidinha do dia-a-dia. E encontramos uma resposta escrita no tempo, que não queremos ler mas sabemos que está lá. A adiar a vida. Foi isso. Procuramos algumas moedas no bolso das calças e bebemos um café na máquina automatica de um aeroporto. Olhamos para os outros e perguntamo-nos quem são, de onde vêm e para onde vão. O mundo é para conhecer.
Depois damos por nós verdadeiramente sozinhos. Sem conseguir ler os letreiros das lojas nem os jornais dos quiosques, sem ter o amigo do costume para falar de futebol ou de cinema, sem o calor da família e sem que alguém saiba o nosso nome. Mergulhámos no meio da indiferença e percebemos que não é o mundo que vamos conhecer, mas sim nós mesmos.
A felicidade esgravata-se nessa indiferença da mesma forma que se plantam sementes num terreno árido. Marcam-se encontros através da internet, sentamo-nos sozinhos no balcão de um café e metemos conversa com quem passa, caminhamos quilómetros seguidos pela cidade e delineamos estratégias no fundo de um copo de uísque. Faz-se um amigo num dia, uma amiga noutro, e nada nos que se seguem.
As primeiras pessoas que conhecemos são exactamente como nós. Vieram de algum sítio distante e andam no mesmo exercício de se conhecerem melhor. À procura sabe-se lá do quê e para quê. Brindamos com cerveja ao futuro, mas nesse momento é o passado que nos vem à memória. Os brindes que fizemos e os abraços que demos e que já não existem.  Vem-nos à memória e aos olhos. E tornamos a reparar em coisas pequenas para disfarçar.
Os dias alternam entre o frio e o quente. Nunca estão mornos e isso deve ser bom. Arranjamos um tecto que não é muito mais do que apenas isso mesmo e lavamos a cara várias vezes por dia com água fria. Procuramo-nos por trás da ferrugem do espelho, antes de saírmos de casa todas as manhãs, e esculpimos a face para que ela não mude. Temos seis ou sete números de telefone para convidar alguém para uma cerveja e essa foi a maior conquista que se fez até ao momento.
Depois há uma mulher, porque tem que haver sempre uma mulher para que a vida seja vida. É o quarto número da nossa pequena lista e mandamos-lhe uma mensagem ansiosa por um café a dois. Talvez ela apareça, talvez não. Se aparecer, talvez a coisa se repita, talvez não. Se se repetir, talvez se transforme em água e se dilua também ela nos nos nossos olhos.