1.31.2012

oi! tudo bem?

Estação de Campanhã na cidade do Porto. Entro no metro em direcção à estação das Sete Bicas. Escolho uma das cadeiras junto à janela porque, como estou estou cansado, assim posso encostar a cabeça ao vidro e dormitar durante os dezassete minutos que dura a viagem.
No Bolhão senta-se à minha frente uma mulher, aparentemente com a minha idade (mais coisa, menos coisa), cabelos loiros e calças justas ao corpo. Vejo-a pelo canto dum olho que abro preguiçosamente. É bonita. "Oi! Tudo bem?", pergunta ela num doce sotaque brasileiro. Olho apressadamente para o lado, a tentar perceber se ela está a cumprimentar alguém para além de mim. Não, não está. Só me pode estar a cumprimentar a mim. "Sim, está tudo. E contigo?", respondo tentando disfarçar a surpresa.
Três ou quatro segundos de silêncio e ela torna a falar. "Você me espera na estação, viu? Se ficar no carro não tem jeito de o encontrar não. Uns vinte minutos e estou aí!". Ela estava a falar ao telemóvel, com um auricular qualquer que os seus longos cabelos não me permitiam ver. Juro que se tivesse um buraco para me enfiar, enfiava.

1.30.2012

conversa 1880

(no café)

Eu - Olá!
Ela - Olá! Estou atrasada?
Eu - Um bocadinho, mas não faz mal.
Ela - Como já não me lembrava se tínhamos combinado às nove ou às nove e meia, vim às nove e meia.

1.29.2012

bronze

Uma das coisas que o Amor me ensinou foi a não ser pedinchão. Este blogue ficou em terceiro lugar, na categoria humor, num concurso organizado pelo Aventar. Durante as votações não coloquei aqui nenhum link a pedir votos por uma razão muito simples: não me apeteceu ser pedinchão porque gosto de vocês.

1.28.2012

a suficiência é insuficiente

Tenho vestidas três camisolas desalinhadas na zona do pescoço. A Raquel diz-me, em tom de brincadeira, que podia ter arranjado um namorado que se vestisse melhor. Rio-me. Penso, em tom mais sério, que eu não podia ter arranjado nenhuma outra namorada. Nem mais nenhuma.
O Amor duma mulher é suficiente? Sei que há quem discuta isto consigo mesmo desta maneira. A mim, a palavra "suficiente" nunca me chegou para adjectivar o Amor. Prefiro dizer que há homens para quem o Amor duma mulher é tudo. A palavra "tudo" é mais certeira que a "suficiente" para definir um Amor, pelo menos se for mesmo assim.
Há homens que procuram simultaneamente o Amor de várias mulheres. Esses, por estranho e contraditório que possa parecer, são os homens sós. O Amor duma mulher nunca é suficiente, o que quer dizer que nunca se chega ao tudo. Sofre-se mais, mesmo que pareça que se sofre menos. Estes são os homens mais injustiçados pela herança judaico-cristã da nossa cultura. As mulheres chamam-lhes invariavelmente sacanas porque não percebem que eles são sofredores. Nunca sentem que têm tudo e nada lhes é suficiente.
Fecho os olhos nesta floresta densa em que penso, aquecido pelo frágil frio dum Inverno que teima em não se fazer notar. Sei que já fui um pouco dos dois. Abro-os novamente. Por um momento percebo que tenho tudo e que a suficiência me seria insuficiente.

1.26.2012

conversa 1879

Ela - Não compreendo os homens.
Eu - Então porquê?
Ela - O meu namorado passou quatro anos a dizer que não queria compromisso nenhum sério comigo, que a nossa relação era só de passagem e tal. Agora, de repente, pediu-me em casamento.
Eu - Parabéns!
Ela - Parabéns, nada. Eu disse-lhe que no princípio até tinha casado, se ele me tivesse pedido, mas agora habituei-me à tal relação sem futuro e estou muito bem assim.
Eu - Ah!
Ela - Acho que à medida que um homem e uma mulher se vão conhecendo, há um processo de inversão sentimental.
Eu - Inversão sentimental?! Que é isso?
Ela - Ele vai gostando cada vez mais dela, ela vai gostando cada vez menos dele.
Eu - Nalguns casos é capaz de ser verdade. Isso quer dizer que há um momento excelente, em que ambos gostam igualmente um do outro.
Ela - Sim, o nosso foi há um ano, mais ou menos. A partir daí vejo-o cada vez mais frágil e carente. Detesto homens carentes.
Eu - Preferes homens que te digam que não querem nada a sério contigo?
Ela - Sim, definitivamente. Têm muito mais interesse.

1.25.2012

respostas a perguntas inexistentes (194)

sobre a decisão de Amar

O maior equívoco sobre o Amor é acreditar que ele acontece sem mais nem menos. Não acontece. O Amor é sempre uma decisão, tal como o é deixar de pôr açúcar no café, fazer uma viagem à América do Sul ou ficar a dormir num Domingo à tarde. Decidimos aquilo que vai modelar em grande parte os nossos dias, e normalmente as pessoas que andam sempre mal de Amor são aquelas a quem falta a coragem de tomar uma decisão.
O problemas das decisões é que nem sempre estão certas, e isso deve-se à nossa condição humana. Errar é humano, dizem. Pois nesse aspecto eu devo ser o mais humanos de todos. Passei a vida a tomar decisões erradas das quais, no entanto, não me arrependo. Foram decisões que, apesar de tudo, me foram permitindo Amar. É verdade que talvez tenha tomado algumas decisões menos boas porque, em vez da solidão, sempre fui preferindo os Amores possíveis. À falta de melhor era por eles que me decidia. Ainda bem que o fiz, no entanto, pois foi com eles que aprendi isso mesmo: que o Amor é uma decisão.
Sempre que me acreditava apaixonado por alguém, o meu primeiro pensamento era o de ter esse Amor que estava ali à mão de semear. Foi assim toda a vida, e só percebi esse meu grande erro quando me apaixonei pela Raquel. Quero que este Amor me tenha, pensei. Nessa noite ela ensinou-me que o Amor é maior do que eu e tomei a decisão de a Amar.
A diferença entre um Amor que temos, por muito bom que seja, e um Amor que nos tem a nós, tem exactamente a ver com a capacidade de decidir sobre ele. Perdemos o controle sobre tudo o que nos tem a nós e, por isso, também a capacidade de decidir o seu fim. É que o fim de um Amor também é sempre uma decisão.
Percebem?

1.24.2012

conversa 1878

Ela - Acho que aquela moda de se venderem calças novas rotas deve estar para acabar.
Eu - Calças novas rotas?!
Ela - Sim, nunca viste?
Eu - Se calhar já vi, sim.
Ela - Pois, agora com a crise essa moda deve estar para acabar.
Eu - Com a crise?! Porquê?
Ela - Dantes ficava bem usar calças rotas, agora fica mal. Podem pensar que se anda roto por se ser pobre.
Eu - Que raio de pensamento. Olha, eu, por exemplo, tenho estas calças rotas nos bolsos...
Ela - Eu reparei, por isso é que te estou a dizer isto. Não te fica nada bem andar com essas calças nos tempos que correm.

coisas que fascinam (138)

vaivém

Tomamos café. A Sónia pergunta-me como estou. Que estou bem, respondo. A Sónia pergunta-me se ainda estou apaixonado. Faço silêncio com os olhos e ela insiste. E tu, ainda estás apaixonado? Abano a cabeça afirmativamente e sem determinação. Sei que ela não quer saber a resposta, que apenas que eu saiba que ela não está. Então e tu? O Amor foi-se? Ela abana os ombros também afirmativamente.
Fico a pensar na minha pergunta. O Amor foi-se? É a assumpção de que o Amor se vem e se vai como se fosse um passageiro na nossa vida. Na vida de duas pessoas, porque o Amor é sempre isso, a vida de duas pessoas. O meu não se foi, mas também eu tenho medo que um dia destes ele se despeça de mim e saia num apeadeiro qualquer deste tempo que é o meu. Sorrio, talvez nervoso, e digo-lhe que a vida é assim.
Dizemos sempre que a vida é assim quando lhe perdemos o rasto; quando, de facto, nos apercebemos que não sabemos como ela é. Dizendo que ela é assim parece que a estamos a agarrar, mas não estamos. Estamos a escapar-lhe. Sabemos apenas como ela devia ser. Mais nada. E agora sorri a Sónia, talvez nervosa, e abana os ombros, desta vez negativamente. A vida não é assim.
Quando um Amor se vai a vida vai-se com ele. Da mesma forma que quando um Amor se vem a vida vem-se com ele. É assim, no sexo e fora dele, com o alívio de que a vida nunca se vai toda. Vai-se uma parte dela, talvez quase toda, talvez nervosa abanando os ombros esmorecidos. A que resta fica, às vezes, num amigo a quem se pergunta se ainda está apaixonado mesmo que não se queira saber a resposta. Quer-se só dizer que já não se está. E tomar um café.

1.23.2012

conversa 1877

Ela - O meu ex está sempre a dizer-me que não percebe o que é que falhou no nosso casamento.
Eu - Está?
Ela - Sim, e eu já lhe expliquei que o que falhou no nosso casamento foi precisamente ele não ser capaz de perceber onde é que o casamento falhou.
Eu - Admito que, só assim, também não percebi lá muito bem.
Ela - O facto de eu me sentir muito sozinha quando estava casada com ele, por exemplo, foi um motivo forte.
Eu - Ah! Isso já é um motivo com pés e cabeça.
Ela - Mas o grave foi ele nunca ter sido capaz de perceber isso.
Eu - Podias ter-lhe dito.
Ela - Se eu lhe tivesse dito, tudo o que ele mudasse para alterar as coisas não ia ter qualquer valor.
Eu - Assim dificultas muito as coisas.
Ela - Ninguém disse que manter uma relação é fácil.

1.20.2012

conversa 1876

Ela - Estou um bocado deprimida com o último gajo com quem fui para a cama.
Eu (risos) - Porquê?
Ela - No fim disse-lhe que tinha sido bom. Enfim, que eu tinha gostado.
Eu - Ainda bem, então.
Ela - Mas ele respondeu-me que sim, que até tinha sido mais ou menos.
Eu - Mais ou menos?! Ena!
Ela - Pois. Expulsei-o logo da cama e de casa.
Eu - Também não era preciso tanto.
Ela - Era, era. Será possível que um homem não tenha um mínimo de sensibilidade?!
Eu - Nem sei que te diga...
Ela - Agora queria era pedir-te uma coisa.
Eu - O quê?
Ela - Que lhe devolvesses as cuecas. É que eu não o quero ver mais.
Eu - Queres que eu vá devolver umas cuecas a um gajo que eu não conheço de lado nenhum?! Claro que não.
Ela - É que senão ele vai lá casa buscá-las e não me apetece vê-lo durante uns tempos.
Eu - Ele que esqueça as cuecas.
Ela - Mandou-me uma mensagem, porque eu não lhe atendo o telefone, a dizer que tem medo que a mulher dele dê pela falta delas.
Eu - A mulher dele?! Ele é casado?!
Ela - Pelos vistos. Eu também não sabia.
Eu - Eu não lhe dou cuecas nenhumas, desculpa lá. E se eu fosse a ti também não dava. Com essa do "mais ou menos", o melhor que podes fazer é pôr as cuecas no lixo e deixar que a mulher dele descubra e se chateie.
Ela - Bem visto. Sabes que às vezes pensas mais como uma mulher do que eu própria?

mamas e bolas

Em 2011, o Loto Libanês tentava convencer os libaneses a apostar no jogo desta forma, substituindo as mamas duma mulher por duas bolas do respectivo jogo e retirando-lhe parte da cara. Há alguma publicidade machista que, apesar de tudo, tem alguma criatividade. Esta, no entanto, é apenas a demonstração de que quando não há ideia nenhuma para fazer um anúncio publicitário, se cai normalmente na receita do corpo da mulher. Os anúncios às vezes nem chegam a ser machistas. São só estúpidos.

1.19.2012

os senhores dos anéis

Às vezes ponho-me a pensar nas coisas que nós fazemos e que não têm sentido nenhum. Manter um casamento onde já não existe pinga de Amor, por exemplo, é uma delas. O absurdo chega ao ponto de haver quem mantenha o casamento sendo vítima de violência doméstica. E eu, que acho que o Amor tem sempre que estar primeiro do que qualquer relação contratual, não compreendo.
Um casamento é isso mesmo, para o mal e para o bem, um contrato. Como é também, ou devia ser, por exemplo, o programa eleitoral dum partido. No casamento está-se a contratualizar, sobretudo, um Amor. Não se está a abrir portas para que o cônjuge use e abuse da vida do outro. Casamos, assinamos um papel, trocamos anéis, beijamo-nos e a vida continua. Deve continuar, aliás, como era antes, com Amor e cuidado de parte a parte.
Às vezes ponho-me a pensar nas coisas que nós fazemos e que não têm sentido nenhum. É quando percebo, por um momento, porque é que os portugueses (ou a maior parte deles) são uns falhados no Amor. É porque são absurdamente capazes de manter um casamento sem sentido. Sem sentimento também. São os senhores dos anéis e de mais nada. Talvez seja uma questão de comodidade e de aparência. Talvez. Só isso.
Um dos piores casamentos que os portugueses (ou a maior parte deles) mantêm é com políticos estúpidos. Casam repetidamente com eles de quatro em quatro anos assinando um contrato, dizendo que sim no mais importante dos altares, fazendo a festa, trocando anéis. Depois encolhem-se perante a violência de que são vítimas diariamente. Sofrem todos os dias em silêncio e, quando finalmente parece que o martírio está a acabar, lá vem o agressor com as desculpas do costume. Promete que vai mudar, pede mais uma oportunidade, que a vida vai ser melhor, que vai deixar as más companhias. Por fim, que ainda sente Amor. Mas não, não sente.
A Democracia não se pode limitar a um casamento de quatro em quatro anos, depois dessas desculpas esfarrapadas, porque o Amor não se pode confundir com casamento nenhum. É por isso que os portugueses (ou a maior parte deles) falha no Amor e na vida, mas é também por isso que pode, duma vez por todas, acertar o passo em ambos. Divorciem-se pôrra! Casem com outr@. Agora que já nos levaram os anéis, só somos senhores de nós mesmos. Levantemo-nos.

conversa 1875

Ela - Achas bem que uma mulher ande com um homem vinte anos mais velho?
Eu - Não acho bem nem acho mal. Não acho nada...
Ela - Caraças! Nem se pensares que quando ele tinha vinte anos ela ainda era um bebé?
Eu - Que raio de conversa, sinceramente.
Ela - Tinha esperança que tivesses uma resposta na ponta da língua...
Eu - E para que é que tu querias que eu tivesse uma resposta na ponta da língua?
Ela - Para quando os meus pais me perguntarem o mesmo.

1.18.2012

por gestos

Quando conheci a Sónia não consegui estabelecer contacto com ela a não ser através do olhar. Ela nasceu assim, sem ouvir e sem poder aprender a falar. Observei-a discretamente durante o resto da noite, a cortar o seu próprio e imenso silêncio com gestos mais ou menos bruscos, como se tivesse uma faca nas mãos e tentasse abrir caminho numa selva densa. Comunicava apenas com as poucas pessoas presentes que sabiam linguagem gestual, três ou quatro, e de vez em quando o irmão dela apresentava-a aos que iam chegando à festa da mesma forma que a tinha apresentado a mim. É surda e muda, dizia.
A festa devia-se, pelo menos pelo convite que me tinha sido feito, ao seu divórcio. O seu casamento tinha sido uma união violenta de quase quatro anos, e portanto o seu fim significava verdadeiramente um princípio. Era esse princípio que se festejava, embora ainda não se soubesse muito bem do quê. Talvez, pelo menos, duma vida melhor.
O irmão queria que esse princípio fosse rodeado por muitas e diversas pessoas, e por isso até a mim me pediu para participar. Eu, que era apenas um seu conhecido colega de trabalho com quem nunca trocara mais do que um "bom dia" ou "boa tarde". Às vezes podemos gostar muito de alguém com quem nunca falamos, disse ele justificando o convite inesperado.
E foi assim que me apaixonei por ela. Sem palavras e sem sons. Apenas um olhar tão profundo como um poço e um gesto tão universal como o de levar a minha mão ao peito dela. Corei. Toquei-lhe. Afastei-me e passei o resto da noite a segui-la disfarçadamente com os meus olhos nervosos.
Propositadamente fui ficando para o fim, e enquanto a porta daquele pequeno apartamento ia pingando para o exterior os convidados, eu ia ganhando espaço para o que o nosso olhar se pudesse tocar de novo, tal como a minha mão tocara no seu peito. Era o meu objectivo da noite, para depois poder adormecer aninhado nesse sentimento.
Há muitos anos que eu não dormia tão bem, que é como quem diz, tão perto dum Amor tão longínquo. No dia seguinte passei as horas do trabalho a pensar no que podia dizer ao irmão para me conseguir aproximar dela. À saída da fábrica cruzei-me calculadamente com ele e anunciei-lhe que, por coincidência, tinha começado a frequentar aulas de linguagem gestual. Era mentira, mas uma mentira inofensiva se eu começasse mesmo a fazê-lo num dos dias seguintes. Aliás, uma mentira que funcionou, porque ele convidou-me para ir lá a casa treinar com a irmã. Se eu quisesse, claro. Sorri-lhe.
Nessa mesma noite investiguei todas as possibilidades que havia na cidade para aprender a nova linguagem da minha vida. Fiz uma lista que percorri com o meu dedo indicador ao som do meu ritmo cardíaco, acabando por escolher um curso duma associação qualquer sem fins lucrativos. Inscrevi-me por email e compareci à primeira aula nessa mesma noite.
Primeiro bati à porta e ninguém abriu. Depois carreguei num interruptor e percebi, através dum vidro fosco, que uma luz vermelha se acendia lá dentro. Ouvi passos e senti a maçaneta rodar. Era ela, a Sónia, a professora. A mesma que me tinha ensinado que me podia apaixonar por gestos e na enormidade dum silêncio. Trocámos um olhar, ela pegou na minha mão e levou-a ao seu peito. Toquei-lhe, corei, entrei.

1.16.2012

pensamentos catatónicos (269)

botas de borracha

Devo dizer que detesto a palavra fashion ou, se preferirem, acho a indústria da moda e as passagens da Fátima Lopes a coisa mais imbecilóide que pode haver. A roupa e o calçado para mim são apenas isso mesmo: roupa e calçado. Ponto
O que eu me lembro de gostar de calçar, quando era a criança, é das botas de borracha que me permitiam saltar para as poças de água sem molhar as meias e os pés. A minha mãe também as adorava, mas porque eram baratas e me calçavam durante toda a  época chuvosa do ano. Lembro-me de percorrer o caminho entre a minha casa e a escola primária com as minhas vermelhas calçadas, saltando de poça em poça de água como um gafanhoto errante.
Para além das crianças, as únicas pessoas que usavam botas de borracha eram os agricultores, exactamente com o mesmo motivo de não molhar as meias nem os pés. A única diferença é que as botas deles eram pretas e as das crianças eram às cores. A Helena, por exemplo, tinha umas azuis de que nunca me esqueci. Lembro-me delas a tentarem pisar as minhas numa brincadeira do recreio.
A Helena foi a minha namorada da infância, ou seja, foi a minha namorada que nunca o chegou a ser. Lembro-me de fugir da escola com ela para andar de baloiço no parque, de dividirmos os nossos lanches pelos dois, de nos sentarmos em cima do ramo duma árvore onde planeávamos construir uma cabana que nunca chegou a existir. Depois os pais dela foram viver para Lisboa e roubaram-na de mim. Nunca mais a vi.
Um destes dias, enquanto passeava com a Raquel, vi umas botas de borracha assim, iguais às que eu e a Helena usávamos em criança. Eram as mesmas, só que em vez de estarem amontoadas numa caixa na velhinha sapataria Lé, em Aveiro, estavam numa prateleira de vidro iluminadas por dois focos como se fossem o actor principal dum filme hollywoodesco qualquer. Custavam mais de cem euros e uma adolescente gritava com a mãe hesitante para que lhas comprasse.
A Raquel disse-me que agora é normal, que as botas de borracha estão na moda e são um produto quase de luxo. Por um momento pensei na Helena e desejo, em nome das memórias da minha infância, que ela não se tenha tornado assim, alguém que anula o sentido prático e divertido da vida para se colocar numa iluminada mas entristecida prateleira de loja, que é o que a palavra fashion nos faz a todos. É por isso que a detesto. Ponto.

conversa 1874

Ela - As pessoas infelizes costumam ser histéricas de vez em quando.
Eu - Costumam?
Ela - Costumam. A histeria é uma máscara de felicidade.
Eu - Não sei se é.
Ela - Estou a falar daquela histeria festiva, em que uma pessoa faz a festa, lança os foguetes e ainda vai apanhar as canas.
Eu - Ah! Talvez...
Ela - Não é talvez, é de certeza. Eu sei porque também sou assim.
Eu - Histérica?
Ela - Sim.
Eu - Mas és infeliz, tu?
Ela - Sim, sinto-me infeliz.
Eu - Tem piada, nunca me pareceste uma mulher infeliz. Muito pelo contrário.
Ela - Lá está, isso é porque sou histérica. Tu és lento das ideias, não és?

1.12.2012

conversa 1873

(ao telefone, depois de uns minutos de conversa)

Eu - Desculpa lá interromper-te, mas estou cheio de dores de cabeça e preciso dormir. Dá para falarmos amanhã?
Ela - Dói-te a cabeça?
Eu - Sim.
Ela - Não costumas ter dores de cabeça...
Eu - Acho que é por não ter tomado café. Importas-te? Preciso dormir...
Ela - Ah! Sei que dor de cabeça é essa. Tomas um café e pronto, está resolvido.
Eu - Mas é que eu ando com a tensão muito alta e estou a tentar deixar o café.
Ela - Ah! Então não tomes. É perigoso ter a tensão alta.
Eu - Eu sei. Beijinho e até amanhã. Depois ligo-te...
Ela - Estás a despachar-me?
Eu - Não, é que preciso mesmo de dormir porque estou mal disposto.
Ela - Ah! Já podias ter dito.

1.11.2012

respostas a perguntas inexistentes (193)

amores perfeitos

Não há Amores fáceis. Por estranho que pareça também não há Amores difíceis. Os Amores são todos mais ou menos iguais. A única diferença está em que alguns Amores o são mesmo, outros não. O que torna os Amores todos iguais é o facto de cada um ser único. É nisso que são todos iguais. Não há nenhum Amor que se compare ao meu, assim como o meu também não se compara a nenhum outro. É por isso que ele não é fácil, nem difícil. É o meu Amor. Só isso.
A unicidade do Amor acaba com a ideia de perfeição, seja ela a perfeição cristã de Santo Agostinho ou a positivista de Kant. No Amor busca-se precisamente o contrário: a imperfeição. É ela que é única e é ela que tem a capacidade de nos fascinar. Por ser isso mesmo: única. A ideia absolutista de perfeição é, aliás, uma seca de todo o tamanho e por isso impossível de ser objecto de Amor.
É como se cada um de nós se apaixonasse por um lugar, porque um Amor é isso mesmo. Um lugar. Ninguém mais lá entra, nessa grandiosa imperfeição que só duas pessoas são capazes de criar. Amo-o todo, esse lugar, e é por isso que cuido dele o melhor que sei e posso, para que um dias destes não me apeteça abandoná-lo. É a minha tentativa de prolongar o Amor no tempo. Hoje, por exemplo, acordei de manhã e plantei-lhe uns Amores Perfeitos, para lhe poder chamar também isso, pelo menos em parte. Um Amor Perfeito.

1.10.2012

conversa 1872

Eu - Li no jornal que na Tailândia um homem casou com o cadáver da namorada.
Ela - Com o cadáver?
Eu - Sim. Ela morreu num acidente de viação e ele estava tão apaixonado que casou com ela já morta. É bonito, parece a história de Pedro e Inês...
Ela - Nem é mal pensado, se virmos bem.
Eu - Em que aspecto?
Ela - Pelo menos assim não se divorciam. Se o meu marido estivesse morto quando me casei com ele, tinha sido tudo muito mais fácil.

depois a Raquel chegou

Depois a Raquel chegou, sentou-se ao meu lado, e perguntou-me se eu estava bem.
Hoje, quando peguei no jornal do café para ler as gordas enquanto esperava pela torrada seca e pelo galão directo do costume, subi-o mais um pouco do que o habitual de forma a que ele me tapasse a cara. Mesmo assim quase todos me perguntaram se eu estava bem. A dona do estabelecimento que passa mais tempo na caixa a contar o dinheiro do que a atender os clientes, a empregada que passa o dia a varrer o estabelecimento com os próprios pés, o homem que vende cautelas da lotaria, a mulher que tem um cabeleireiro mesmo ao lado e vem sempre tomar café de bata vestida.
Não gosto que me perguntem se estou bem quando não estou. Ainda fico pior. A pergunta "estás bem?" só devia surgir quando o inquirido se sente de facto bem, caso contrário fá-lo ter uma noção mais intensa do seu próprio mal-estar. O "sim" não sai por ser mentiroso, o "não" não sai por ser inesperado e doloroso. Abanei os ombros a todos com um mastigado "hum hum".
A torrada lá veio, não tão seca quanto o desejado, e o galão também, não tão quente quanto o desejado. Nunca vem nada como o desejado quando o próprio dia não está a ser o que desejámos. Dobrei o jornal em dois, como se fosse possível fechar ali para sempre as más notícias sobre violência e sobre a crise económica, e dei a primeira dentada numa das tiras de pão protestando com a empregada pelo excesso de manteiga derretida.
Depois a Raquel chegou, sentou-se ao meu lado, e perguntou-me se eu estava bem. E eu respondi que sim, até porque já estava.

1.06.2012

conversa 1871

(ao telefone)

Ela - Vais ter ao café?
Eu - Vou. É só pôr um casaco e saio já.
Ela - Eu também vou só trocar de roupa. São cinco minutos...
Eu - Ah! Se vais trocar de roupa são mas é uns trinta ou quarenta minutos. Então espero mais um bocado.
Ela - Isso foi alguma boca foleira?
Eu - Não, não...
Ela - Bem, demora o tempo que quiseres mas não te arrisques a chegar depois de mim.
Eu - Então diz-me a que horas sais de casa...
Ela - Não digo nada. Não sei bem, por isso não digo. Só digo que não podes chegar depois de mim, senão fico sozinha numa mesa e não gosto.
Eu - Se chegar eu antes, fico eu sozinho numa mesa...
Ela - Claro, que é para eu não ficar.
Eu - Ah!
Ela - É preciso explicar tudo...

pensamentos catatónicos (268)

Gosto imenso de estar sozinho, no entanto detesto a solidão. Para conseguir aproveitar plenamente os momentos em que estou só, preciso de alguém que queira estar sempre comigo mas às vezes não esteja. E com quem eu queira estar sempre mas também não esteja de vez em quando. Sempre tive este problema com as mulheres, precisar muito da companhia especial duma para poder estar melhor comigo mesmo. Sozinho, queria eu dizer. Parece um paradoxo mas a sério que não é.
Outra coisa que parece é que é fácil mas a sério que também não é. O verbo querer é um dos piores para quem Ama, porque é no Amor que queremos tudo e nada ao mesmo tempo. Acho que é por isso que as pessoas gostam de ir às compras. Para se conseguir o que se quer nas compras basta ter dinheiro. Para se conseguir o que se quer no Amor não há nada que baste. A não ser, talvez, a imensa sorte de Amar alguém que compreenda isto. Compreendem?

1.04.2012

conversa 1870

Ela - O meu marido nunca percebeu muito bem o que eu queria realmente dizer quando lhe dizia que o Amava.
Eu - E querias dizer o quê? Não era que o Amavas?
Ela - Não, claro que não.
Eu - Ui! Então era o quê?
Ela - Que naquela altura me sabia bem estar com ele.
Eu - Não me digas, por favor, que as mulheres são todas como tu.
Ela - A maior parte são, acho eu.

a última sessão

Começo por lhe ver a mão. Treme de frio enquanto segura a chávena quente com chá verde fumegante, e eu finjo que não reparo. Dou-lhe dois beijos curvando-me o mais possível para ela não ter que se levantar da frágil cadeira do café. Tenho dificuldade em reconhecer a menina a quem há vinte anos atrás eu convidava disfarçadamente para ir à última sessão comigo. Hoje está um filme muito bom no Oita, dizia eu. E ela perguntava o nome. E eu, que nunca sabia, contornava a mentira dizendo que um amigo me tinha dito que o argumento era bom. Ela acreditava sempre. Ou não.
Os seus olhos demonstram alguma dificuldade em sair das covas que o tempo lhe escavou nos ossos da face. Enfrento-os. Houve uma noite em que o filme era tão mau que eu não tive como me desculpar. Enfrentei-a e ela a mim. Sorrimos um para o outro como se o nosso silêncio se explicasse a si mesmo. E o nosso Amor, já agora. Aquele filme mau tinha demonstrado que eu inventava as idas ao cinema só para estar com ela. Foi a primeira vez que nos beijámos.
Os lábios dela parecem uma represa de palavras e de beijos. Estão pintados com a mesma cor de sempre, como se o tempo tivesse conservado o batom propositadamente para um dia qualquer. Este dia, em que a torno a ver quase como que por acaso, quase como dois planetas que se tornam a cruzar depois de uma longa volta à sua estrela. Vejo-a pelo meu lado que anoitece. Pergunto-lhe se quer ir à última sessão. Ela ri-se engolindo o som do riso. Pergunta-me qual é o filme. Que não sei, respondo. Ela sacode os ombros como se quisesse enxotar os anos que passaram.
Por falar em ombros, são tão pequenos e frágeis, os dela. Não percebo como é que eu pousava ali a minha cabeça enquanto ela me abraçava. Talvez nunca a tenha pousado literalmente e ficasse sempre em esforço para não a magoar. Era mesmo isso, já me lembro. Foi dali, do ombro esquerdo dela, que os meus olhos lhe contemplaram pela primeira vez os seios, margens dum decote que corria como um rio em maré alta. Foi dali que mergulhei e me afoguei tantas vezes quantas pude, até ela me socorrer e salvar a vida numa lenta respiração boca a boca.
Não me mentiste, disse ela. O quê? E ela diz que eu não fingi que sabia que filme queria ir ver, nem fingi que um amigo me dissera que o argumento é bom. Não fingi porque já não a Amo, diz ela. Nem ela a mim, sublinho. É a nossa última sessão, este chá quente que nos provoca calafrios. É, não é? É. Sorri engolindo de novo o som do riso.

1.03.2012

conversa 1869

(ao telefone)

Eu - Temos que beber um copo um dia destes.
Ela - Dizes sempre isso mas depois nunca convidas.
Eu - Por acaso tens razão, admito que sim...
Ela - Se não me telefonares para sair neste fim de semana, nunca mais falo contigo.
Eu - Não me digas que eras capaz de deixar de falar comigo só por eu não te telefonar este fim de semana.
Ela - Está bem.
Eu - Está bem o quê?
Ela - Não digo.

batatas fritas

Costumava ver-me ao espelho antes de pensar em matar-me. E digo costumava porque o fazia todos os dias, ver-me ao espelho e pensar em matar-me. Também desistia todos os dias da segunda acção. Acho que o fazia porque era confortável não me matar sabendo que o podia fazer. Acabar, duma vez por todas, com aquilo que via ao espelho.
É que não havia muito mais para além disso, uma mulher que nunca se tinha achado bonita, nunca tinha Amado ninguém nem sequer tinha vontade o fazer. Pior, não sei se algum homem alguma vez na vida tinha tido vontade de me Amar a mim. Um dia troquei tudo por cigarros uns atrás dos outros, que é como quem diz, troquei uma morte rápida por uma lenta mas com algum prazer.
A minha mãe costuma dizer-me que eu nunca devia ter deixado o Bruno. Que ele era bom partido e até já tinha casa paga. E eu lembro-me sempre dele sair da minha cama com o pénis ainda erecto e sujo de esperma, a correr para a sala para tentar ver o final dum jogo de futebol qualquer. Não conseguiu e voltou frustrado. Para a próxima temos que ser mais rápidos, disse. Eu calei-me e fumei um cigarro, destes que ainda fumo agora, com uma vontade enorme que ele saísse dali.
Depois desse dia aprendi que a solidão e a fome são irmãs chegadas, que ambas precisam de ser saciadas rapidamente. O problema é que, numa e noutra, quando se come depressa demais há o risco duma mulher se engasgar. Engasguei-me com ele da mesma forma que já me engasguei com batatas fritas. Sei que todos os homens que vieram a seguir ao Bruno me pareceram iguais. Alguns bons à vista mas todos sem sabor. Nunca comi nenhum.
À minha mãe comecei a inventar casos amorosos, só para ela ficar descansada. Fui criando homens que se mostravam interessados por mim mas que, por um acaso qualquer da vida, acabavam por se afastar. Depois comecei a inventá-los também para mim, principalmente nas noites em que não conseguia dormir. Acreditei em todos, pelo menos até hoje. Cruzei-me com o Bruno numa avenida qualquer da cidade e ele abraçou-me. Os abraços são como as batatas fritas. Saciam. Já me tinha esquecido disso.
Vejo-me ao espelho agora sem pensar em mais nada. Sabe-me bem não querer matar aquilo que está do outro lado, mesmo que não consiga responder ao meu sorriso forçado. Ele perguntou-me se eu estava bem e respondi que sim. Trocámos os novos números de telemóvel e prometeu que me telefonava hoje. Estou à espera. Dum abraço.

1.02.2012

conversa 1868

Ela - O que é tu gostavas mesmo que acontecesse em 2012?
Eu - Acho que gostava de assistir a uma mudança política para a esquerda que pusesse um fim definitivo à pobreza e à miséria. E tu?
Ela - Bem... com essa resposta até perdi a vontade de dizer...
Eu - Vá lá, diz lá...
Ela - Eu estava a pensar que gostava que me crescessem as mamas um bocadinho.

coisas que fascinam (137)

bom ano

Está tudo bem. Encho um copo de água e encosto-me ao parapeito da janela de onde, dissimulado por um cortinado amarelecido, vejo a minha paisagem de todos os dias como se fosse a primeira vez. É que há dias assim, em que todas as mulheres que passam são o que nós imaginamos. É a vantagem de lhes perceber apenas o vulto que a distância dum quinto andar permite. E eu imago-te a ti em todas elas.
A passagem dum ano é a mesma coisa que a passagem doutro dia qualquer. Vem a noite e depois a manhã outra vez. A única diferença é que por qualquer motivo há mais pessoas a fazer promessas a si mesmas. A partir de agora não bebo mais, a partir de agora vou correr para o jardim da cidade, a partir de agora vou ser feliz ou a partir de agora outra coisa qualquer. Eu prometi que a partir de agora vou olhar para ti todos os dias como se fosse a primeira vez.
Está tudo bem. O copo de água vai a meio e ouço-te entrar. Bateste a porta com mais força do que o habitual e eu sei que foi para avisar que chegaste. Sei também que até te encontrar tenho que passar pelo corredor comprido que liga o quarto à entrada. São cerca de três ou quatro segundos, o suficiente para amarrotar todas as preocupações que tenho como se fossem folhas finas e mandá-las para um escondido escaninho da minha memória. É assim que te vejo pela primeira vez todos os dias, é assim que me percebo apaixonado por ti. É assim que te desejo bom ano.