6.17.2016

respostas a perguntas inexistentes (373)



café

Coloco duas colheres de café numa cafeteira de vidro antiga, fervo um pouco de água e misturo. Tenho que esperar cerca de um minuto para que o filtro humedeça e possa descer pelo vidro suavemente, caso contrário fará um movimento abrupto e desperdiçarei café.
São cerca de dois a três minutos para preparar a bebida e, sempre que o faço, lembro-me da minha máquina de pastilhas em Portugal. Não com saudade, mas porque essa é mais uma memória que me ajuda a entender-me a mim mesmo. É o tempo, pá. Do que me lembro é de estar impaciente durante os vinte segundos que demorava a tirar um café nessa máquina e então reparo como estou a ganhá-lo. Ao tempo, repito.
Sento-me a ver a mistura a fazer-se e contemplo-a ao mesmo ritmo da vida. É sempre assim. Ainda ontem me sentei num bar no centro da cidade e pedi uma Kamenitza de meio litro. Não sei quanto tempo estive a ver o desfile de transeuntes lá fora, através duma janela empoeirada, como se o tempo estivesse a contar apenas para eles. Depois duas mulheres pararam a conversar e uma delas olhou para mim duas vezes. Trocámos um sorriso e o barulho do antigo relógio de cuco do bar tornou a fazer-se ouvir.
Pensamos que a solidão se dá quando estamos sós, mas não é verdade. A solidão dá-se quando não sabemos estar connosco, mesmo que estejamos rodeados de pessoas. É uma cobra, essa gaja. Até no Amor mais intenso pode aparecer a deslizar, se não aprendemos a fazer um café de três minutos aproveitando a vida.

6.16.2016

nuvens

Não, não é só dinheiro. Às vezes nem dinheiro é. É o choque, é o Amor, é a vida. Enfim, é o sangue que nos corre nas veias. É por tudo isso que um dia se fecha a porta de casa com duas voltas à chave e não se olha para trás. Para não morrer antes que a morte chegue. E sim, há muito sofrimento à mistura que se pode beber num cocktail de lágrimas, sorrisos e abraços. Também há muita saudade, muita hesitação e, acima de tudo, muito coração.
Os lugares são importantes, porra. Por isso mudar de lugar pode sê-lo ainda mais. Relativiza-nos tudo, estar noutro sítio, menos o Amor que temos por um filho, por uma mãe ou por um irmão. Partimos de novo do ponto do ponto zero e caminhamos pela rua como quem acabou de nascer outra vez. Sabemos que tudo o que nos rodeia é novo, menos as nuvens. Talvez essas tenham passado pelo nosso país de origem e alguém de quem gostamos as tenha visto. É uma ligação qualquer, daquelas que não entendemos mas que sabemos que está lá. E choramos e rimos Rimos e choramos.
A primeira sensação é a de desamparo. Estamos sozinhos no que para nós é o fim do mundo e damos um novo significado às palavras fome e frio. Sobretudo à palavra Amor. Arrendamos uma casa velha num bairro degradado, dormimos no chão duas semanas e depois improvisamos uma cama com tábuas velhas. Com o primeiro salário compramos um fervedor de água e um bico de um fogão. De repente, uma lata de feijão e meio chouriço cozido é a melhor refeição que tivemos na vida. Sorrimos de novo, enquanto lemos pela enésima vez o único livro em português que trouxemos de casa. Adormecemos com ele sobre o peito, os pés nos velhos tacos de madeira e a cabeça numa esponja. Enroscamo-nos com o vazio e contamos segredos à noite infinita. Está tudo bem, dizemos.
Durante o dia somos mendigos, não de uma moeda nem de um bocado de pão. Apenas de bondade. Um sorriso que apareça, por exemplo, e ajude a curar um velho Amor que ainda sangra. A bondade, como todos sabem, não se pede de mão estendida. Tem que vir com dignidade. Então estendemos as palavras. Falamos com todos os que nos querem ouvir, mesmo que não nos percebam bem, até um sábado à tarde em que alguém nos devolve o sorriso e nos dá a mão. Então tudo é novo. Menos as nuvens, claro.
Depois há a violência, aquela que é inerente à própria condição de respirar. Estar vivo significa sofrer quase sempre, menos quando temos Amor. Ainda assim é tão bom. É o melhor que nos pode acontecer, estarmos vivos e podermos fazer alguma coisa por nós, nem que seja olhar para a merda duma nuvem e ver nela, com saudade, a única coisa que nos resta do passado. É quando digo isto a alguém e esse alguém me responde com um abraço que, apesar de não estar em casa, sei que estou novamente em casa.