7.31.2012

respostas a perguntas inexistentes (214)

Ontem a Patrícia veio ver-me. Digo assim, que a Patrícia veio ver-me, porque é mesmo esse o sentido da coisa. Eu estava sem vontade de sair e ela veio visitar-me como se eu estivesse internado na minha própria casa. Ela era a visitante, eu o doente. Ouvi-a a estacionar o carro lá fora (distingo o som do motor do carro dela muito facilmente), mas mesmo assim esperei que ela tocasse à campainha para me levantar e abrir a porta.
Tinha-lhe dito ao telefone que não me apetecia estar com ninguém, mas ela insistiu que queria vir. Argumentou que não demoraria muito. Esperei, entre esse telefonema e a chegada dela, talvez uns vinte minutos. Depois vi-a entrar, servir dois copos de vinho duma garrafa que ela própria trouxe, e sentar-se ao meu lado no sofá.
O cd áudio que estava a tocar acabou nesse preciso momento. Ela levantou-se de novo e escolheu uma colectânea de música popular brasileira para encher a casa com alguma alegria. Palavras dela, pelo menos. Perguntou-me várias coisas sobre mim: se eu ando bem, se está tudo bem entre mim e a Raquel, se está tudo bem com a minha filha e se ando a ler algum livro. Respondi que sim a tudo. Por fim saiu de novo, sem se servir de um segundo copo, e disse-me para lhe ligar se precisasse.
A Patrícia é uma amiga rara. É leve. Acho que me Ama sem nunca ter estado apaixonada por mim. Quer-me bem e não quer mais nada. Atura-me nas minhas infinitas mariquices de homem adulto, sempre sem demonstrar cansaço ou impaciência. Não me pede nada em troca da sua atenção. Nem sequer a minha própria atenção.
Ouvi o motor do carro dela arrancar lá em baixo e fui à cozinha molhar os copos de vinho para que os resíduos não secassem. Vi a garrafa dela a meio, pus-lhe uma rolha e guardei-a. E eu, que não queria ver ninguém, fiquei imediatamente com saudades dela.  

7.30.2012

respostas a perguntas inexistentes (213)

A idade é uma vara curta. Pensamos na quantidade de anos que alguém já viveu e imediatamente sabemos como se deve comportar. Se sair dessa lógica, dizemos muito naturalmente que "já não tem idade para isso" ou que "já tem idade para ter juízo".
Usar a idade como argumento para o que quer que seja, revela o quão falsos e ingratos podemos ser. Dizer a alguém que a sua idade não se adequa ao comportamento que teve é, antes de mais, revelar que não se tem argumento melhor e que apenas se quer chatear a pessoa em questão. "Sou um merdas, por isso digo-te que a tua idade não te permite fazer isso!".
Isto é tão assim, que o próprio Amor parece não se adequar a partir duma certa idade. É muito raro, para não dizer inexistente, vermos idosos de mãos dadas e aos beijos na rua, como se os sentimentos secassem dentro de nós com o passar do tempo. É, provavelmente, o maior medo que tenho.
É que nos meus quarenta e um anos sinto-me apaixonado como quando tinha quinze ou dezasseis e, pior ou melhor, sofro da mesma maneira. Basta-me estar uma tarde sem receber um telefonema de quem Amo, que começo a sentir no peito uma espécie de novelo de lã molhado. É uma sensação de abandono e uma mistura de tristeza com felicidade extrema. Nem sei bem o que é, mas sei que sempre tive e ainda tenho idade para isto.
Quando isto desaparecer em mim, eu também desapareço.

7.27.2012

quarenta e um

Sou relativamente novo. Já fui relativamente velho.
Quando me separei tinha quase trinta e seis anos e passei, durante algum tempo, a olhar para o meu passado. Hoje faço quarenta e um anos e ando a olhar para o meu presente, piscando o olho aqui e ali ao meu futuro.
Obrigado Raquel.

7.26.2012

respostas a perguntas inexistentes (212)

sítios

Existem sítios diferentes de todos os outros sítios do mundo. São aqueles dos quais, por um acaso saído da improvável lei das probabilidades, nos tornamos familiares. Pode ser um banco no jardim, um café ou uma simples paragem de autocarro, qualquer sítio onde nos sintamos em casa. Todos temos sítios assim e eu, por exemplo, até tenho vários. Sou rico em sítios onde me sinto em casa. Normalmente, e como assumido egoísta que sou, vou a esses sítios quando me apetece estar sozinho sem, de facto, me sentir sozinho. 
Esses lugares são ideais para, nas fases em que não nos sentimos verdadeiramente apaixonados por ninguém, nos apaixonarmos momentaneamente por esta ou aquela mulher. As paixões momentâneas são óptimas para dar vida a uma alma morna, até porque vêm e vão tão depressa como um suspiro. Quem suspira não morre.
Houve um Verão qualquer da minha vida em que, todas as manhãs sem excepção, ia para a cidade do Porto passear sozinho e sem destino. Almoçava por lá e voltava para Aveiro num dos primeiros comboios da tarde. Nesse Verão adoptei como um dos meus sítios uma simples paragem dos STCP, onde de vez em quando autocarros paravam, largavam e engoliam uma quantidade sempre razoável de passageiros. Pareciam pulmões metálicos, e eu ficava ali bastante tempo, sentado num banco a ler o jornal e a sentir a sua respiração ofegante.
Não posso dizer que foi assim que conheci a Alice, porque de facto nunca a conheci verdadeiramente, mas posso dizer que foi assim que as nossas vidas se cruzaram numa única vez. Ela entrou num autocarro qualquer e, quando voltou duas horas depois e saiu na paragem do outro lado da rua, reparou que eu ainda estava no mesmo sítio. Atravessou a rua na minha direcção e, por qualquer motivo que nunca percebi muito bem, adivinhei que ela vinha falar comigo. De facto, eu tinha reparado nela, e a minha efémera paixão por ela, tal como muitas outras nessa manhã, tinha morrido praticamente à nascença.

- Estou aqui apenas porque gosto de estar aqui, a ver pessoas e assim... - justifiquei-me sem que ela me perguntasse nada. E ela sorriu. Reparei que pestanejava muito.

Nesse dia não apanhei um dos primeiros comboios da tarde para voltar para casa. Percorri primeiro parte da cidade do Porto, depois da cidade de Gaia, a pé. Durante horas e horas, sempre a falar com ela sobre temas tão triviais quando trabalho, férias, livros, filmes e música. Até ao fim da tarde, em que nos sentámos numa esplanada com vista para o rio Douro e falámos de Amor.
Um bando de pardais disputava, no que me parecia ser uma luta desigual, alguns pedaços de pão com muitos pombos. Era uma mulher idosa que lhos atirava, desde o banco contíguo à margem do rio onde estava sentada. E eu, que não era dali, disse à Alice que podia adivinhar que aquela mulher ia ali todos ou quase todos os dias. Que aquele era um sítio especial para ela, de certeza absoluta.
Algum silêncio se fez. A Alice a olhar para a paisagem e eu a torcer pelos pardais contra os pombos naquela luta desenfreada por comida, como se ali estivesse concentrada toda a injustiça do mundo. Foi então que ela me começou a dizer exactamente o mesmo que eu disse no princípio deste texto. Que existem sítios diferentes de todos os outros sítios do mundo. São aqueles dos quais, por um acaso saído da improvável lei das probabilidades, nos tornamos familiares.
Lembrei-me da Alice hoje de manhã. Passei a pé por uma paragem da MoveAveiro duas vezes, mais ou menos com uma hora de diferença, e das duas vezes vi lá o mesmo homem a ler o jornal.

7.25.2012

conversa 1926

(no café)

Ela - Já viste o rabo daquela gaja lá fora?
Eu (olhando) - É grande...
Ela - Grande?! É enorme.
Eu - E porque é que estás com uma cara tão feliz de repente? É por veres uma mulher com o rabo grande?
Ela - Não, não... nem sei bem porque é...

conversa 1925

(no café, ela a tirar um cigarro da carteira)

Ela - Vou lá fora fumar.
Eu - O.k.
Ela - Não vens comigo?
Eu - Não, estou a ler o jornal.
Ela - Eu e o maldito vício do tabaco. Já venho.
Eu - Quando eu te conheci tu não fumavas, pois não?
Ela - Não. Vê lá tu, comecei a fumar com vinte e nove anos. Já tinha idade para ter juízo...
Eu - Pois, isso já não é idade para começar a fumar. Normalmente, ou se começa quando se é adolescente ou então já não se começa...
Ela - Dispenso é a tua moral. Obrigado, não preciso.
Eu - Não é moral nenhuma. É uma constatação. Tu própria disseste que já tinhas idade para ter juízo...
Ela - Eu posso dizer o que eu quiser sobre mim, mas dispenso o julgamento dos outros. Vou fumar sozinha e ainda bem.

7.24.2012

pensamentos catatónicos (277)

a mulher-objecto

Os objectos são todos estúpidos. A maior parte das vezes não nos apercebemos dessa estupidez latente em tudo o que nos rodeia e não vive, e quando nos apercebemos é demasiado tarde. É o Amor, ou a falta dele, ou a confusão nele, que nos faz sentir a estupidez dos objectos.
O problema é que nós sentimos sempre alguma coisa pelos objectos, nem que seja desprezo, e os objectos nunca sentem nada por nós. Este desequilíbrio da vida começa logo quando ainda somos crianças e decidimos dormir com um objecto qualquer. Adoptamos um urso de peluche, por exemplo, e fazemos tudo por ele durante anos a fio. Aguentamos firmes uma infância inteira, sempre leais, e quando finalmente os nossos pais, já preocupados com a nossa criancice aguda, nos separam à força, somos sempre nós que choramos. Nunca ele.
Hoje sentei-me no estúpido do meu sofá, por exemplo, com as mãos na cabeça e preocupado com a minha vida. Depois levantei os olhos e estavam todos na mesma, os objectos. A minha caixinha de música à espera que lhe desse corda, o televisor desligado e os sapatos amontoados a um canto da sala.
Os objectos fazem-nos perceber a nossa própria insignificância. Estão sempre na mesma, demonstrando que o mundo existe para além de nós, do que sentimos e de quem Amamos ou odiamos. A maior parte das vezes não nos damos conta disso, e quando damos é demasiado tarde. Para nós, não para os objectos.
Acho que é daí que vem a expressão mulher-objecto. Acabei de a ouvir, vinda amargurada da boca dum amigo meu. Dizia ele, enquanto virava as páginas duma revista qualquer com mulheres bonitas, que detesta mulheres-objecto. Eu percebo-o. Mulheres-objecto são aquelas por quem sentimos alguma coisa mas que se estão nas tintas para nós. São objectos, só porque nos fazem perceber a nossa própria estupidez e insignificância.

7.23.2012

coisas que fascinam (153)

Que linda!
Nunca sei muito bem como reagir quando uma mulher bonita se senta à minha frente num transporte público, como ainda hoje me aconteceu no metro do Porto. Finjo que nem reparei nela ou aproveito o momento para encher a vista? Sei lá. Não lhe adivinho o pensamento. Penso nesta expressão: "encher a vista" e lembro-me de estar na The National Gallery, em Londres, com a Raquel em frente a um Van Gogh. "Deixa-me olhar para este quadro mais um minuto, para encher a vista", dizia ela, e eu assentia acenando afirmativamente a cabeça. Os girassóis ali mesmo à minha frente e eu só olhava para ela, que era ela a minha paisagem.
Comecei por lhe ver os dedos dos pés, com as unhas pintadas de vermelho e umas sandálias coloridas que pareciam vindas daí, dum campo florido qualquer. Levantei a cabeça e os nossos olhares cruzaram-se por um instante, para se transformarem num voo errante e fugidio logo a seguir. Os olhos dela pousaram nas páginas silenciosas dum livro, os meus continuaram esvoaçantes como se fossem uma borboleta tonta. Às vezes no tecto, outras vezes na paisagem que corria lá fora, raramente nela.
Que linda!

7.20.2012

conversa 1924

Ela - Tenho que ir para casa estudar e não me apetece nada...
Eu - Vais estudar o quê?
Ela - Vibrações em forças elásticas.
Eu - Hum...
Ela - O que foi?
Ela - Fizeste uma cara!
Eu - Lembrei-me duma coisa relativamente às vibrações em forças elásticas. Foi só isso.
Ela - Do quê?
Eu - Do Plastic Man. Era um dos meus heróis favoritos em criança...
Ela - Tenho a certeza que foi isso. Os homens são todos iguais...
Eu - Bem, percebo que não te apeteça estudar vibrações em forças elásticas no Verão
Ela - Pois... apetecia-me mais ter aulas práticas. Estou farta de teoria...

7.19.2012

conversa 1923

(num restaurante self-service, eu com um prato de comida e uma cerveja de lata no tabuleiro)

Ela - São cinco euros, por favor.
Eu - Quanto é que custa a cerveja?
Ela - Um euro.
Eu - Ali diz que o prato são três euros e trinta...
Ela - Pois diz.
Eu - Então, três euros e trinta mais um euro dá quatro euros e trinta.
Ela - Mas eu fiz-lhe o preço do menu. Tem direito a café.
Eu - Eu não quero café, mas mesmo assim o café custa sessenta cêntimos. Mesmo que eu quisesse...
Ela - É que agora já registei...
Eu - Então anule o registo.
Ela - Não posso.
Eu - Eu não vou pagar cinco euros euros por um produto que está marcado a quatro euros e trinta.
Ela - Não?
Eu - Não.
Ela - Vou chamar o patrão.
Ela - Chame também os Trabalhadores do Comércio.
Ela - Quem?
Eu - Os Trabalhadores do Comércio, uns que têm uma música que diz: "chamem a Polícia que eu não pago".
Ela - Não conheço... mas não vou chamar a polícia. Não é preciso.
Eu - Era só uma piada. 
Ela - É que eu cobro sempre o preço do menu... 
Eu - Mas só devia cobrar nos pratos mais caros. No prato do dia não faz sentido nenhum.
Ela - O patrão vem aí e fala com ele, está bem?
Eu - Está bem, mas daqui a bocado quero outro prato, que este fica frio.

coisas que fascinam (152)

Naqueles dias...

A Cristina, às vezes, não se reconhece ao espelho, diz ela. Olha para o seu próprio reflexo como se estivesse a ver outra pessoa qualquer. Distancia-se de si mesma e percebe que a sua existência começou exactamente por aí, pelo seu corpo. Não pela alma. Tudo o que ela é, para além do corpo, deve-se à existência deste. Depois pensa na morte, sem perceber se o que sente é tristeza ou felicidade, e telefona-me.
Tenho uma música só para ela no meu telemóvel. This Must Be The Place, dos Talking Heads. Por isso é que, mesmo estando no banho, já sabia que era ela a ligar-me hoje de manhã. Fechei a torneira e corri para atender. O meu corpo deixou pegadas de água nos azulejos da casa de banho e no flutuante do corredor, para as quais fiquei a olhar enquanto a cumprimentava entusiasmado.

- Estás em Aveiro? - Perguntou.
- Sim.
- Queres almoçar comigo?
- Sim.

A Cristina costuma ilustrar as suas palavras com gestos enérgicos, como se o verbo não chegasse para se fazer compreender. Diz-me que a filha dela está cada vez mais bonita, e passa a mão esquerda pela frente da própria face. Depois diz que está naqueles dias, e a  mesma mão cai inerte na toalha de papel da mesa do restaurante. Eu ainda não disse nada e já sei o que vem a seguir. Ela desenha um círculo enorme à volta da barriga e diz que se sente assim desde que engravidou. Só às vezes. Sorri.
Aqueles dias são esses mesmos, aqueles em que ela pensa na morte apesar de ser nova, porque é mãe, e telefona-me para conversar. Não é um pensamento obsessivo ou compulsivo, nem sequer uma depressão. É um lento descortinar da vida tal como ela é. Engana a morte assim, a falar comigo e a fazer gestos intercalados com garfadas numa salada de polvo.

- Está boa, a salada... - diz ela enquanto eu aceno afirmativamente.

Durante o silêncio que se segue, ambos sentimos o sabor da comida com mais intensidade. No meu caso, o da cerveja de pressão cuja espuma parece querer viver e o do azeite com alho por cima dos tentáculos tenros. A vida, a nossa vida, tem sido isso mesmo. O gesto das palavras e o sabor da comida. Dou-me conta de quem sou para ela, de quem sempre fui. Sou aquele que engana a morte, e digo-lho como se estivesse a chegar a uma conclusão fenomenal qualquer.
Ela ri-se. Sou mesmo.

7.18.2012

conflitos

Em "Conflitos", Hal é um graduado militar britânico destacado na ilha de Chipre, onde os ingleses mantêm seu império apesar das investidas do movimento independentista cipriota-grego Eoka (Enosis para os portugueses). A violência vai-se alastrando e Hal, que tem na ilha a sua mulher e as suas filhas, vai-se deixando consumir pela guerra. Nesta cena, ele regressa a casa depois de uma batalha com alguns dos mais importantes líderes da Eoka.

  E colocou a mão debaixo do algodão frio da camisa de dormir, e levantou-a até à coxa que lhe parecia secreta, bem conhecida e bela para ele. Aquilo era por fim real, aquilo tornava-a real. 
Tirou o conto e o coldre pesado com a pistola escorregou até ao chão de tijoleira com um ruído surdo. Agora era rápido e fácil tirar as calças, e manteve a mão pousada no pescoço dela, macio, pulsante, enquanto com a outra a puxava para si, e impeliu-se repentinamente para dentro dela; era-lhe tão difícil não a agarrar com muita força e penetrá-la, não ser bruto, apenas possuí-la com rapidez e entrar tão profundamente dentro dela quanto lhe fosse possível. Ela emitiu um som. Soou-lhe muito longe dele. Estavam demasiado próximos da borda da cama. Teve de lhe pegar com as duas mãos à volta da cintura, mantendo-se dentro dela, puxando-a mais para cima para facilitar as coisas, e mantendo os corpos de ambos em cima da cama. 
 - Não. Não... Hal... pára - disse ela, e durante alguns estranhos segundos hesitantes a mente dele absorveu o facto de ela estar a chorar, e reparou naquilo e misturou-o com a necessidade que sentia dela, a sua respiração nos seus dedos, a sua pele limpa, todas as outras partes dela que eram suas, e perdeu-se ali.

in "Conflitos", de Sadie Jones, Civilização Editora 2010.

7.13.2012

conversa 1922

Ela - Os homens não compreendem as suas próprias mulheres. Essa é que é essa...
Eu - Então?
Ela - Acabei de discutir com o meu namorado.
Eu - Porquê?
Ela - Ele não percebe que antes de ter o período, é perfeitamente normal uma mulher poder pensar que está grávida, e que essa sensação é boa e má ao mesmo tempo.
Eu - Ah! Discutiram porque tu lhe disseste que se calhar estás grávida?
Ela - Sim... mais ou menos. Ele respondeu que eu digo isso todos os meses e depois nunca estou, e que é melhor eu parar de o assustar.
Eu - Já algumas vez falaram abertamente sobre isso? Se querem ter filhos ou não... 
Ela - Eu disse-lhe uma vez que talvez gostasse de engravidar sem querer.
Eu - Engravidar sem querer?! É natural que isso o assuste.
Ela - Ora! A partir do momento em que eu digo isso é porque é por querer, embora possa parecer que é sem querer. Ele devia perceber isso, não devia?
Eu - Não sei...
Ela - Também nunca sabes nada.

7.12.2012

pensamentos catatónicos (276)

feijoada de búzios 

Ao vento, a toalha de papel mostra-se irrequieta como uma ave que bate as asas para levantar voo e não consegue. Naquele caso em particular, não consegue por causa dos dois pratos colocados frente a frente na mesa mais bem situada da esplanada, e também da panela de barro com duas doses fumegantes de feijoada de búzios. Ela levanta o testo e dá-lhe permissão, através dum simples abrir e fechar de olhos, para se servir primeiro, mas ele decide pegar antes no prato dela. É o primeiro motivo para a discussão que vem logo a seguir.

- Já devias saber que não gosto que me sirvam.

Ele sorri para dentro, como se assim pudesse engolir o nervoso miudinho. Continua a encher o prato e depois troca-o pelo dele, de forma a que ela fique de novo com o vazio. Quantas coisas sobre aquela mulher é que ele deve, de facto, saber? Acima de tudo, que coisas sobre ela é que é suposto saber? Pica os primeiros feijões com o garfo enquanto, como um rádio mal sintonizado ao fundo, ela continua o seu protesto.
Não tem a certeza, mas talvez ele a tenha servido primeiro de propósito, precisamente para que ela pudesse soltar essa latente raiva que lhe vinha desenhando a face e moldando os gestos desde manhã. Da esplanada avistam-se as longas filas de macieiras alinhadas num dos montes, que mais parecem uma obra desenhada a régua e esquadro, cortadas por um tapete de alcatrão que serpenteia a paisagem até desaparecer no horizonte. Noutro monte, mais à esquerda, algumas e raras amoreiras povoam os terrenos riscados pelo arado dum tractor. Tudo está exactamente como há dez anos, quando eles se conheceram naquele mesmo local durante uma festa de amigos comuns e, adivinhando a paixão à primeira vista, acabaram por sair sorrateiramente para ficarem sozinhos. Tudo, até o céu de claras aguarelas azuis e brancas. Menos ela.
A deterioração daqueles almoços anuais, cada vez menos felizes e feitos mais por obrigação do que outra coisa qualquer, têm sido o barómetro que mede a relação dos dois. Ele acha que a culpa é do tempo, esses dez anos em que ele passou a ter que saber muitas coisas mesquinhas sobre ela. Aproveita o silêncio cansado dela e escreve na própria toalha de papel algumas dessas coisas.

1) Não misturar as embalagens de leite magro com as de leito meio gordo.
2) Não abrir a cama à noite, antes de se deitarem, apenas de um dos lados.
3) Ligar a máquina de café todas as manhã assim que entrar na cozinha.
4) Amarfanhar as garrafas de plástico antes de as colocar na reciclagem.
5) Não deixar os sapatos em cima da balança da casa de banho.
6) Não a abraçar por trás quando ela está a descascar fruta.
7) Não a beijar na testa quando ela está a ver televisão.
8) Não misturar os copos de champanhe com os copos de uísque.
9) Não entrar no carro sem puxar para trás o banco onde ela se vai sentar.
10) Não a servir quando estão a jantar juntos.

Rasga aquele pequeno pedaço de papel e põe-lho quase à frente dos olhos, mesmo ao lado do prato. Algumas gotas do molho da feijoada pontilham-no como se o quisessem ferir. Ela olha para ele enquanto mastiga um búzio mais difícil de roer do que os restantes.

- Estes foram os motivos pelos quais discutimos as últimas dez vezes. - diz, enquanto se levanta para se aproximar dum dos muros da esplanada. Dali, parece que quase pode tocar o céu com a ponta dos dedos. Ri-se de novo para dentro.

Ela ainda mastiga o mesmo búzio. É isto que ela quer que ele saiba sobre ela?


7.10.2012

sofás

Tenho um amigo com quem só estou de vez em quando, talvez duas ou três vezes por ano, mas com quem continuo conversas como se tivessem sido interrompidas apenas uma hora antes. Talvez seja um pouco estranho, mas quando o vejo é como se todos aqueles meses que estive sem o ver simplesmente desaparecessem. À superfície da minha memória vêm os últimos momentos em que estive com ele, e tudo o resta mergulha nas profundezas do meu cérebro como pedras no maior dos oceanos.
Ontem, por exemplo, quando me sentei num dos sofás que ele tem na cozinha (sim, ele tem dois sofás singulares na cozinha) tornei a levantar-me imediatamente para ir buscar a garrafa de uísque que ele tinha guardado numa das portas dos armários na última vez que lá estive, talvez há uns quatro meses. E lá estava ela, ainda a meio, à espera de despejar o seu conteúdo sobre as nossas palavras. Tirei também dois copos e servi-nos aos dois.
Quem decidiu pôr os dois sofás na cozinha não foi o André, assim se chama ele, mas sim a sua ex-mulher, quando os dois partilhavam aquele espaço durante a noite toda a seguir ao jantar, entre uma bebida e conversas ocasionais. Era, de facto, um casal que estava na cozinha mais do que noutra qualquer divisão da casa, e eu próprio cheguei a testemunhar isso.
Às vezes, nos dias que correm, ainda o vejo a tocar os sofás, em silêncio, como se assim pudesse também tocar um pouco do seu passado com ela. Mas não pode, e foi assim que ontem começámos mais uma conversa, precisamente onde tinha acabado a última há muito tempo atrás. No seu divórcio e nos motivos que o levaram a nunca mais conseguir estar com uma mulher. Dei o primeiro gole na garrafa de Bushmills (a garrafa ainda lá estava porque ele sabe que aquela marca de uísque é para as nossas conversas) e perguntei-lhe se ele, de facto, nunca tinha sentido uma atracção que fosse. Afinal de contas, concluí simplificando a coisa ao máximo, há tantas mulheres bonitas e interessantes por aí...
Ele também deu um gole prolongado antes de responder, como se tivesse a resposta toda na ponta da língua e quisesse apenas lubrificá-la antes de a transmitir. Foi então que me falou da tese mais estranha sobre paixão que já ouvi.
Diz ele que se farta de ver mulheres muito bonitas, cuja beleza o sufoca assim que as vê, mas que nunca tenta nada com elas porque simplesmente não acredita nesse tipo de paixão. A beleza é como o chocolate, disse, é doce mas pode enjoar. O André quer começar a sentir-se apaixonado por uma mulher apenas dois ou três meses depois de a conhecer. Devagarinho, como ele repetiu insistentemente, de forma a perceber que também ela se apaixona por ele da mesma maneira.

- Isso não é ser esquisito? - perguntei enquanto enchia de novo os copos.
- O Amor é como uma bola de neve. Se não estiver sempre a crescer, desfaz-se.
- É ser esquisito, sim. - concluí.
- Sabes porque é que somos amigos há mais de vinte anos? - Tocou de novo no sofá como se estivesse a tocar o passado, desta vez o nosso.
- Porque nos damos bem.
- Porque somos amigos lentos um com o outro. Não exigimos nada um do outro a não ser honestidade e companhia de vez em quando. É mais ou menos assim que eu me quero apaixonar, mas por uma mulher.

Dei-lhe uma certa razão na questão da bola de neve, embora por outro prisma. Vamos ficando cada vez mais exigentes com as relações que temos, e por isso talvez vá sendo cada vez mais difícil começar uma nova. Se eu acabasse a minha relação actual, não faço a mínima ideia do tempo que ia precisar para começar outra, concluí. Talvez muitos anos também. Depois fizemos silêncio, e será desse silêncio que nossa próxima conversa começará, talvez daqui a uns meses...

7.09.2012

conversa 1921

Ela - Preciso falar contigo.
Eu - Podes passar cá em casa esta noite.
Ela - Tens bolachas daquelas que tinhas a última vez que aí fui?
Eu - Bolachas?! Não, não tenho...
Ela - O.k. então está combinado. Passo aí às dez, pode ser?
Eu - Pode... 

coisas que fascinam (151)

à boleia

Tenho uma gaveta para onde atiro coisas. É  uma gaveta bem grande, numa cómoda que herdei do meu avô e que foi feita por ele há quase cem anos. Por exemplo, quando viajo e trago pequenas recordações como postais, bilhetes ou qualquer tipo de panfletos, atiro-os para ali. Faço o mesmo com algumas fotografias, pequenos objectos ou prendas. Não organizo nada, apenas atiro para lá coisas que, de outra forma, não saberia muito bem onde pôr. Na verdade é uma forma de sentir que organizo uma parte da minha vida que não é organizável.
Hoje de manhã, ao atirar para lá alguns panfletos da última viagem que fiz a Barcelona, decidi remexer naquele monte de pequenos pedaços soltos da minha vida. Meti a mão entre alguns papéis que se amontoavam e tirei um à sorte. Era uma fotografia da Marta.
A Marta deu-me uma vez boleia, de Aveiro para o Algarve, através dum site na internet. Eu andava um pouco perdido, sem estar bem em lado nenhum e, pior ainda, sem fazer ideia para onde devia ir. Vi num site alguém a oferecer boleia do Porto para a Fuzeta, com divisão de custos, e decidi ir passar o fim de semana àquela cidade do sul. Mandei-lhe um email e combinámos que ela me apanhava em Aveiro.
A meio do caminho ela perguntou-me o que é eu lá ia fazer e eu respondi, muito naturalmente, que nada. Só tinha decidido ir ao ver a oferta dela para uma boleia. Perante o silêncio curioso expliquei-me um pouco melhor, o mais que pude dizendo o menos possível, demonstrando que não tinha sítio nenhum para ir naquele fim de semana e por isso qualquer sugestão me parecia melhor do que ficar em casa. Não lhe expliquei que tinha acabado de me divorciar e que me estava ainda a habituar à ideia, tão triste quanto feliz, de ter fins de semana inteirinhos só para mim.

- Eu também só me pus a oferecer boleia para ver se alguém aceitava. Ando um pouco como tu. - respondeu.

Tanto quanto me lembro, depois desse diálogo fizemos grande parte da viagem em silêncio. Não um silêncio perturbador, mas sim um silêncio contemplativo. A sensação era a de que, de repente, se tinham encontrado naquele automóvel duas pessoas que vinham de caminhos similarmente tortuosos, e que naquele momento, pela primeira vez, seguiam numa auto-estrada a uma velocidade razoável e constante, exactamente como aquela que queriam nas suas vidas.
Passámos esse fim de semana juntos e, quanto mais não seja, foi nele que aprendi que a solidão se pode matar com alguém que não conhecemos de lado nenhum, que às vezes é mais fácil contarmos as coisas mais íntimas precisamente a quem até então nem sabia da nossa existência. Desta forma, não nos tornamos demasiado transparentes aos olhos de quem nos conhece mas sim aos olhos de quem não é suposto encontrarmos muitas mais vezes na vida.
De facto, não vi a Marta muitas mais vezes. Lembro-me de ter ido tomar café com ela ao café Ceuta, no Porto, numa ou outra tarde estéril. Mais nada. Mas hoje, quando olhei para a fotografia dela,tive a certeza de que foi uma mulher importante na minha vida. É isso que as mulheres têm a mania de ser: importantes na vida dos homens.

7.06.2012

coisas que fascinam (150)

menino

Tenho ido almoçar a um restaurante onde a dona me trata por menino. Não me lembro da última vez que me chamaram menino da maneira que ela o faz, mas isso chegou para ter ficado cliente assíduo logo na primeira vez que lá fui. A cozinheira saiu da copa com um prato de sopa fumegante e perguntou alto para quem era. "É para aquele menino!", disse a dona. Eu sorri. É que vou fazer em breve quarenta e um anos. 
Uma vez, em criança, recusei-me a comer um prato de sopa assim, também fumegante. Pior, recusei-me a almoçar. Não tinha fome. A minha tia disse-me que eu estava com cara de menino apaixonado e que era por isso que não queria comer. "Já está um menino!", concluiu ela olhando para o meu tio, que acenava com a cabeça concordando. Na altura não percebi como é que ela adivinhou uma das minhas primeiras paixões, mas liguei imediatamente as palavras "menino" e "apaixonado". Pelos vistos era preciso ser a primeira para sentir a segunda.
Não me sinto velho. Na verdade sinto-me mais novo do que velho, embora não seja nem uma coisa nem outra. O que eu sei é que estou continuamente apaixonado há três anos e meio, mais coisa menos coisa, e para ser franco acho que isso nunca me tinha acontecido na vida. Deve ser da idade, lá está. Pelo menos é o que penso de vez em quando. Talvez finalmente tenha aprendido a Amar. Ou então foi sorte, sei lá. 
Já estive apaixonado na vida durante mais de três anos e meio, claro, mas nunca assim desta maneira: ininterruptamente. Admito que isto às vezes me dá medo, mas o que me dá mais vezes, quase sempre, é o oposto. Uma coragem qualquer que não sei explicar bem. Pela primeira vez na vida sinto-me, de facto, menino outra vez.
Quando era novo, menino mesmo, fartei-me de ouvir incentivos para me tornar homem. "Faz-te um homem", "Vê lá se cresces e arranjas uma mulher!" ou "Estás um homem feito!". Cheguei a pensar que ser menino é ser inconsistente, que é um limbo entre a criancice e a vida a sério. Aquela em que, lá está, arranjamos uma mulher para a vida. Depois cheguei à vida a sério e apeteceu-me ser menino outra vez. É que é uma desilusão descobrir que o Amor pode morrer devagar.
Tem piada, agora que penso nisso acho que foi a maior desilusão que tive na vida, essa de acordar de manhã e descobrir que o Amor morreu. Tive que estar agora mais de três anos ininterruptamente apaixonado para o voltar a ser. Menino, digo. Menino!

7.05.2012

conversa 1920

Ela - É sobre quê, esse livro é esse que andas a ler?
Eu - Sobre um casal de checoslovacos que casa antes da ascensão do Hitler ao poder , sendo que ele é um judeu rico, e de tudo o que lhes acontece com a invasão dos nazis à Áustria e à Checoslováquia.
Ela - Não parece muito interessante. Estou farta de guerras.
Eu - Ele tem uma amante que acaba por fugir, com ele e a própria mulher, para a Suiça. A história é também um pouco sobre ele e essa amante.
Ela - Amante?! Então deve ser giro. Emprestas-me quando acabares?

entremos dentro desta rapariga


Estava a olhar para esta publicidade da Reborn To be Alive, uma fundação belga para a promoção da doação de órgãos, que diz que tornarmo-nos doadores será provavelmente a única maneira de entrarmos dentro desta rapariga (becoming a donor is probably your only chance to get inside her).
Há dois erros grosseiros nesta forma de promover uma causa tão nobre quanto a doação de órgãos. O primeiro é que parte do princípio que todos os potenciais doadores querem, de facto, "entrar" desta rapariga. O segundo é que isso implica que esta bonita e jovem mulher tenha um acidente ou uma doença grave.
Ser sexista já é suficientemente mau, sofrer de total insensibilidade relativamente a quem nos rodeia ainda é pior. Ninguém se torna doador de órgãos para satisfazer a sua vida sexual, mas parece que a Reborn To be Alive ainda não percebeu isso.

7.03.2012

pensamentos catatónicos (275)

Balotelli

No trabalho devemos ser tristes. O trabalho é um dever de todos, durante o qual devemos sofrer e evitar qualquer manifestação de felicidade. Só a sofrer justificamos o pão de cada dia. É evidente que eu discordo totalmente deste princípio judaico-cristão, transposto estrategicamente para o modelo económico capitalista após a separação dos poderes político e religioso. Por isso mesmo é que fiquei estupefacto quando, durante o Euro 2012, vi tantas pessoas (incluindo amigos meus) elogiarem o Balotelli.
Eu nem sequer sabia quem era o Balotelli, mas fiquei a saber que é um jogador que não costuma festejar os seus próprios golos porque acha que eles fazem parte do seu trabalho. Para o demonstrar, comparou os seus golos com um carteiro a entregar uma carta. Ele não festeja, pois não? Perguntou.
Pois não, mas devia festejar. Era bom que todos pudéssemos festejar o nosso trabalho todos os dias, por nos sentirmos recompensados económica e socialmente com ele. Era bom que todos percebêssemos que devemos estar gratos a quem entrega uma carta, a quem entrega uma pizza ou a quem varre as nossas ruas.
Festejamos os golos do Balotelli sem perceber que, ao fazê-lo, estamos a contribuir para uma felicidade efémera e para uma infelicidade continuada. A do trabalho, a dos dias que passam.
A esse propósito, recebi hoje um postal que Raquel me enviou a semana passada durante uma visita que fez a um país estrangeiro. Entre outras coisas diz que ali, onde ela estava, só lhe faltava eu para se sentir feliz. Agradeci ao carteiro ter-mo trazido direitinho à minha caixa de correio. Para mim, ele é mais importante que qualquer jogador de futebol.

7.02.2012

fecho éclair

Suspirou assim que fechou a porta. Foi a primeira vez que mentiu declaradamente à mulher para ter um fim de semana sozinho. Não lhe mentiu no destino nem no nome do Hotel, caso ela quisesse telefonar, mas mentiu-lhe no motivo. Disse-lhe que ia em viagem de negócios a Madrid, mas foi apenas porque sentia uma desesperada necessidade de estar sozinho.
No avião teve o primeiro remorso e até chegou a pronunciar o nome dela, Ana, atraindo por instantes a atenção do passageiro ao seu lado. Pensou em como o corpo dela se está a transformar com a gravidez de quem vai ser, em breve, o seu primeiro filho. Os seios como frutos maduros, as pernas como raízes grossas e a barriga em forma de balão parecem pertencer já mais a esse filho do que a ele mesmo. Não fazem Amor há dois meses e as conversas entre ambos também não têm fugido muito às questões de organização doméstica. Contas por pagar, roupa por passar, louça por lavar, etc. Ana.
Mal saiu do avião e se pôs a passear pela cidade, a primeira sensação de novidade que teve foi a de poder olhar para todas as mulheres que passavam por ele como se fossem suas potenciais amantes. Talvez por isso precisasse de estar sozinho, para sentir de novo essa chama do sexo a arder-lhe no corpo. Andou toda a manhã alegremente perdido, até se meter num comboio e ir dar ao parque de diversões onde se encontra agora.
O Rui detesta fumar. Enjoou aquele sabor artificial do tabaco e a constante sensação de estar intoxicado, fartou-se daquele cheiro a fumo impregnado na roupa todas as manhãs (é sempre de manhã, ao vestir-se, que dá por ele) e até já se esqueceu do prazer que teve nos primeiros cigarros da sua vida. Mesmo assim acaba de acender um cigarro, talvez porque também deteste não fumar.
Para além do tabaco, detestar uma coisa e o seu contrário só lhe aconteceu no Amor. Lá está, sente-se cansado de Amar Ana mas também detestaria não Amá-la. Ri-se sozinho entre duas passas sem sabor e diz para si mesmo que não está maluco. Malucos estão aqueles que gritam na Montanha Russa que se agita mesmo por trás de si, cujos carros quando passam vão fazendo um ruído idêntico ao que seria o dum fecho éclair gigante.
Hoje parece ser o dia dos contrários para ele. Fuma detestando fumar, não Ama adorando Amar. Além disso, num dia em que se sente tão cinzento quanto a própria vida, acabou a passear sozinho num parque de diversões nos subúrbios de Madrid.
É neste lento contar do tempo que uma mulher se aproxima dele e lhe pede lume. A primeira coisa em que ele repara é que ela é bonita, ou melhor, que lhe apetece achá-la bonita. Tem os cabelos pretos, talvez pintados, e os olhos de um castanho claro contrastante. Depois de acender o cigarro dela no dele não se vai embora, mas antes decide sentar-se no mesmo banco a contemplar a diversão dos outros. Os gritos na Montanha Russa, mesmo por trás deles, continuam a intercalar o fecho éclair gigante.
Ali, à frente do silêncio de ambos, desfilam famílias de pais e mães que tentam divertir-se divertindo os filhos. Ele sabe que um dia fará exactamente o mesmo, com Ana e o seu filho. Talvez até venha a disputar com ela o colo da criança, como vê agora dois pais fazerem num momento em que a criança decide chorar. Mas neste momento, olhando para aquela mulher sentada mesmo ao seu lado, a fumar um cigarro cuja chama nasceu no mesmo fogo, apetece-lhe amá-la.
O fecho éclair atrás deles corre mais uma vez, salpicado de gritos de pessoas que lhe parecem tão assustadas quanto felizes. Também o das calças dele parece querer abrir, dada a pressão que o falo, entusiasmado pela simples imaginação de poder levar a estranha para o Hotel, lhe causa. Vai esperar que ela acabe o cigarro e convidá-la para uma bebida. Se ela aceitar, tentará ter sexo. A vida é uma montanha russa.