9.20.2023

Que noite para deixar de fumar

Aquele seria o seu último cigarro e como último cigarro de uma vida que levava quarenta e quatro anos tinha tanto de angustiante como libertador. Não era para menos. No espaço de apenas três dias a sua vida mudara radicalmente e, apesar de ela ter primeiramente interpretado as mudanças como más, no seu íntimo sabia que as vantagens apareceriam lentamente como se fossem bolhas de ar a subir num profundo e escuro oceano. 

A sua filha única, Ana, emigrara repentinamente para a Roménia, onde ia começar a trabalhar num call center qualquer; o seu marido, cujo nome não queria tornar a dizer nem para si mesma, deixara um curto bilhete de despedida na porta do frigorífico e fazia agora setenta e duas horas que não aparecia em casa. Curiosamente, a sua primeira reação ao ler o bilhete foi sorrir, mas perante a repetição do feito e a memória de que ele voltava sempre no dia seguinte depois destes bilhetes, o seu sorriso esmorecera como um dia que se faz noite. Estas setenta e duas horas eram portanto uma esperança real de que desta vez talvez ele não voltasse. 

Deixar bilhetes de despedida na porta do frigorífico era apenas mais uma decepcionante característica daquele homem. Nem para se despedir conseguia inovar, ser único, surpreendê-la. Até nas anedotas baratas os amantes deixam bilhetes na porta do frigorífico e, na verdade, talvez fosse esse o motivo. Ele nunca tinha lido um livro na vida nem sequer visto um filme mais complexo do que o Sozinho Em Casa. Agora que pensa nisso, ela já nem se lembra por que motivo se apaixonou por ele. Talvez a paixão às vezes seja só uma necessidade estúpida no coração, que depois de morrer nos vicia na carne. E na carne ele tinha sido realmente bom, num período da vida que ela já consegue identificar.

Apagou a angústia do cigarro no tablier do próprio carro, um Dacia Sandero branco comprado em segunda mão dois anos antes e que era agora o seu melhor amigo, e inspirou as réstias do seu fumo libertador. Precisava de se intoxicar de liberdade, pensou. Naquela rua de Lisboa a prostituição de homens era  a lei e ela queria voltar a sentir esse vício da carne, tudo o que apenas um fugaz e descomprometido ato de sexo consegue. Ligou o motor do automóvel e avançou cerca de trinta metros para perto de um grupo de homens que se exibia debaixo da tímida luz de um candeeiro público. Depois abriu o vidro da janela lateral do lugar do morto e três deles aproximaram-se.

- Olá querida - disse um.

Era curioso que se chamasse lugar do morto àquele onde por norma se senta quem se prostitui, mas esse pensamento também se desfez em fumo imediatamente. Um dos homens era demasiado baixo e estava nitidamente em bicos de pé enquanto os outros dois se curvavam para dentro do veículo. Tinha sido ele a dizer o "olá querida" mas a sua atenção caiu sobre os outros por esse motivo. Um tinha barba e outro não, o que desampatou a contenda de imediato.

- Se essa barba arranhar, entra, por favor.

O homem que se sentou ao lado dela devia ter cerca de um metro e oitenta, cheirava demasiado a um perfume barato qualquer mas pelo menos parecia ter os dentes todos e o seu olhar era bonito. Não tinha a barriga sobressaída, o que era bom sinal, e os seu braços já estavam cruzados como se se preparasse para uma longa viagem. Não tinha cara de estúpido, mesmo que naquele momento ela não soubesse sequer descrever como seria essa cara, o que era suficiente. 

Foi nesse momento que ela percebeu que não sabia o que fazer. Devia ir para um motel, para casa ou poderiam ter sexo mesmo no carro num qualquer canto escuro da cidade? Não quis perguntar para não ficar em desvantagem naquele estranho negócio a dois, por isso optou pela estratégia de parecer decidida e, talvez também porque existia uma pequena hipótese do seu ainda marido ter voltado, disse:

-Vamos para minha casa, está desarrumada e espero que gostes de sexo no sofá! - No fim da frase os lábios tremeram-lhe um pouco.

- Eu não tenho que gostar, querida. Afinal de contas estou a ser pago.

Em apenas cinco minutos, aquele homem já lhe tinha chamado "querida" duas vezes. Era definitivamente estranho, o negócio de prostituição. O Dacia arrancou como se tivesse dúvidas que o queria fazer e desapareceu devagar na primeira curva. Pelo espelho retrovisor ainda viu os outros dois homens a olhar na sua direção. 


Um silêncio amargo ia com eles no automóvel, por isso ela ligou o som do rádio que, mesmo sem sintonia perfeita, fazia o favor de justificar a falta de palavras entre ambos.
 

Ela tinha razão, ele não era estúpido. Estava ali a trabalhar e fizera questão de o sublinhar na primeira oportunidade, o que punha toda a estética do sexo que se aproximava à sua responsabilidade. Ela ia decidir o que ele ia fazer, depois pagava-lhe, provavelmente com um extra para que ele pudesse regressar de táxi. 


A casa estava realmente bastante desarrumada, tão desarrumada pelo menos quanto a vida dela. Ele tirou os sapatos, que alinhou perfeitamente na entrada, e os seus olhos procuraram de imediato o sofá num irrequieto voo por todas as portas abertas do pequeno T2. Sentou-se decidido e contou os livros espalhados pelo chão e pela pequena mesa da sala, que eram doze; os cinzeiros cheios de beatas, que eram três; as garrafas de vinho e cerveja vazias, que eram cinco. Quando acabou de contar ela já estava com as mãos no sexo dele.

- Não é difícil! - disse ela decidida - só me penetras quando eu estiver húmida e não quero beijos. Podes fazer isso?

- Posso!

Os corpos despiram-se um ao outro, primeiro com a vista e depois com as mãos. Quando estavam nus começaram por se estranhar e familiarizaram-se depois lentamente, primeiro com as mãos, depois também com a vista. Tornaram-se só um até que ela o imobilizou com a voz para poder controlar sozinha o final.

-Já está! - disse.

Gemeu alguns segundos.

Ele não estava, mas isso pouco interessava. Vestiu-se rapidamente e em dificuldade até o falo amolecer. Deu-lhe um cartão com os dados bancários para que ela pudesse fazer uma transferência bancária de imediato.

- Quanto é?

- Um mínimo de cem. A partir daí é o que quiser.

Ela transferiu cento e vinte e levou-o até à porta. Deu-lhe mais uma nota de vinte para o táxi e trancou-se mal ele saiu. Não lhe disse Adeus nem obrigado. Ele também não disse nada. Desta vez nem lhe chamou "querida".

Dentro de casa ficaram ela e o silêncio, um silêncio tão volumoso como o interior de um ovo. Aquele rápido e intenso momento de sexo permitia-lhe agora pela primeira vez olhar para esse caos da sua casa e percebê-lo, estabelecer uma analogia entre tudo o que é material e a sua solidão. Os cigarros, os livros e o álcool, mas também os pequenos objectos decorativos nas estantes da sala, os ímanes de viagens distantes no frigorífico e algumas pinturas na parede das quais já se tinha esquecido que estavam ali,

Aproximou-se da janela. Lá fora a cidade continuava um formigueiro ignorando-a totalmente, ao sangue quente que lhe corria nas artérias e aos pensamentos enublados que lhe corriam na mente. Na verdade, toda aquela quietude só servia para ela entender isso mesmo, que tinha passado a vida a correr atrás de coisa nenhuma.

 O Amor, que tinha sido tudo, encolhera-se lentamente como um figo seco até ser nada e permanecera naquele apartamento a fingir ser vida. 

Sorriu. Que noite para deixar de fumar, pensou.

4.02.2023

Esparguete com Ovos

Ela sentou-se ao meu lado enquanto eu jantava. Não trouxe um segundo prato para a mesa nem talheres, o que significava que não queria jantar. Apenas sentar-se ao meu lado. Abri as hostilidades que o sorriso dela anunciava e perguntei-lhe se estava bem. Que sim, respondeu.
Por uns segundos, entre duas garfadas, percebi que é uma sorte termos alguém que se senta ao nosso lado só para estar ali e o meu pensamento voou indelevelmente por alguns passados de solidão. Depois pousou novamente no meu prato.

- Quando te conheci nunca imaginei que fosses um homem tão simples.

A frase dela ficou a pairar alguns segundos ao som duma música que passava baixinho na rádio e cujo nome eu não sei. Depois desfez-se no ar e eu voltei a viajar no tempo para o dia em que a conheci. Estávamos num jardim na cidade de Sófia em Abril de 2016 e ela dizia-me que na Bulgária é costume deixar sempre algumas moedas de gorjeta, mesmo quando se bebe apenas uma cerveja. Pela dança dos seus cabelos, parecia-me óbvio que era o vento a segredar-lhe o que me devia dizer. E eu a explicar-lhe que em Portugal nunca deixava gorjeta quando bebia uma cerveja fosse onde fosse.

- Estás a comer esparguete com ovos escalfados e apenas sal. Isso é duma enorme simplicidade até no gosto. Acho giro. 

Eu sei que quando cozinho só para mim faço um bife com batatas fritas ou massa com ovos. Ela é diferente. Os seus pratos, mesmo solitários, parecem pequenas e complexas obras de arte.
Explico-lhe agora, com o mesmo tom apaixonado de 2016, que como assim desde criança e pretendo continuar a fazê-lo, o que não me impede de cozinhar mais elaboradamente  noutras alturas.
E é assim que concluo que o tempo voou e estamos juntos há sete anos. 

1.31.2023

A Dança das Folhas

Lembro-me de algumas folhas secas outonais que dançavam na rua deserta ao som de um vento harmonioso. Primeiro pensei que fossem alguns pardais a lutar por algumas migalhas de pão esquecidas no alcatrão, mas depois percebi que não.

O táxi tinha-me deixado ali com duas malas grandes e um saco de desporto igualmente generoso no tamanho, a dona do hostel onde eu alugara um quarto barato à pressa no terminal dois do aeroporto de Sófia ainda não tinha chegado para me abrir a porta e portanto restava-me esperar. Os meus olhos saltavam entre essa tola dança das folhas de árvore e toda a minha bagagem como uma bola de ténis batida lentamente por dois jogadores que nunca falham, quando se concentravam nas malas mergulhavam também na minha própria vida, que começava ali do zero outra vez.

Tinha quarenta e quatro anos e uma sucessão de empregos mal pagos, recorrentemente com salários em atraso, que mesmo assim todos somados não chegavam ao montante das minhas dívidas. A sensação era a de que o país onde eu vivera a maior parte desses anos me abandonara e como qualquer homem abandonado decidira afastar-me. Sem amuos. Apenas afastar-me.

Até àquele momento a minha vida na Bulgária resumia-se a uma conversa com o taxista sobre os jogadores búlgaros que tinham passado por Portugal e a esse primeiro momento de paz. Paz porque estava longe, só isso. Eu ainda não fazia ideia de que a minha próxima companheira de vida seria búlgara e que a ia conhecer num jardim não muito longe dali cerca de três meses depois.

O ano era 2016 e não estávamos no Outono mas sim no fim de Março. Foi também nesse ano de recomeço que me fui desligando deste blogue que começara dez anos antes, após o meu primeiro divórcio. Desde então muita coisa mudou e hoje vivo no Reino Unido, numa pequena cidade chamada Newcastle Under Lyme. A S. veio comigo, ou melhor, veio ter comigo meio ano depois da minha partida da Bulgária para este país e ainda cá está. Quer dizer, ainda cá estamos. 

Vou com cinquenta e um anos de idade e apetece-me escrever de novo sobre os dias que passam. Vou fazê-lo aqui,  recomeçando sem apagar o passado, alternando o meu olhar entre o que me rodeia e eu mesmo. Talvez as folhas ainda dancem  de um lado as minhas malas cheias de nada ainda estejam por abrir. Vocês são bem vindos. Se quiserem, claro.