3.30.2016

é da manhã que estou à espera

É da manhã que estou à espera. Seguro um copo cansado na mão direita e a minha vista descansa nas luzes da cidade, que observo pela última vez. Uma delas, de um candeeiro público, está intermitente há alguns meses. Sei-o porque esta varanda é um dos meus vícios.
Ainda não a vejo, mas sinto-lhe o cheiro. Quando ela chegar, assim como se fosse a minha mais temível predadora, levar-me-á com ela entre os seus dentes afiados. Não pretendo lutar, apenas deixar-me ir. Quando a noite voltar eu já não estarei entre nós.
Não sei muito bem onde é que cabe uma vida, mas sei que a minha não cabe aqui há muito tempo. Há um pequeno espaço a três mil trezentos e sessenta e nove quilómetros desta varanda onde um trabalho me espera. Não sei que mais, talvez algumas lágrimas, um novo Amor, muitas dificuldades de certeza e pode ser que alguns sorrisos também.
Quando a manhã me levar, sei que deixo para trás as sombras preguiçosas da minha rua, as pessoas que me são mais queridas e o sorriso da mulher de avental que me tira o café diário no Bom Gosto, mas onde eu estiver a esperar pela manhã de amanhã saberei que é assim todos os dias.
A partir desta manhã serei apenas mais um que partiu.

3.28.2016

conversa 2194

Ela - Ele é mesmo giro, mas é tão mau na cama...
Eu - Foste para a cama com ele?
Ela - Sim.
Eu- Sempre achei que as piores pessoas na cama são aquelas que dizem que as outras são más na cama.
Ela - Porquê?
Eu - Quando alguém diz que outra pessoa é má na cama, não está sequer a considerar-se a si mesma parte do processo, e uma pessoa que não se considera parte do processo só pode ser má na cama.
Ela - Olha, também és péssimo na cama.
Eu - Foste para a cama comigo?
Ela - Sim.
Eu - Não me lembro.

3.25.2016

uma santa Páscoa!

Grupos organizados de ateus têm agredido cristãos e muçulmanos na Birmânia e no Nepal. Em Portugal não se fala muito nisso, mas o jornal brasileiro Globo trouxe várias vezes à luz do dia, durante o ano passado, a forma como famílias muçulmanas são deixadas à morte em pequenas e velhas embarcações de pesca abandonadas no alto mar.
A violência ateísta é, aliás, secular. Já entre os séculos XI a XII, exércitos enormes de ateus da Europa Ocidental realizaram ataques consecutivos aos territórios chamados pelos crentes monoteístas de terra Santa. Pelo caminho, violavam mulheres e decapitavam homens e crianças. A violência era tanta, que a sua fama chegou a Jerusalém antes dos próprios exércitos ateístas.
Recentemente, ateus levantaram um muro que aprisiona na Faixa de Gaza quase dois milhões de palestinos que, assim, vivem numa espécie de gaiola que nem dourada é e são sujeitos a humilhações e privações diárias no exercício do seu direito fundamental de mobilidade.
Actualmente, os ateus encontram-se no auge da violência e da opressão sobre todos os crentes. Alguns, em nome do ateísmo, fazem-se explodir em cidades europeias ou africanas em atentados que já fizeram alguns milhares de vítimas mortais. Na Nigéria, onde centenas de crianças têm sido raptadas para serem usadas como escravas sexuais, a organização ateísta tem mesmo um exército bem armado e treinado.
O mesmo se passa no Médio Oriente, com o autoproclamado Estado Ateísta, que ocupa actualmente uma pequena parte do Iraque e uma grande parte da Síria. O autoproclamado Estado Ateísta não é oficialmente reconhecido por nenhum outro país, mas mantém relações comerciais com a Turquia, a Europa Ocidental e os Estados Unidos, seus principais fornecedores de armamento e clientes de petróleo.
Infelizmente, também na Índia a violência ateísta se faz notar, principalmente contra cristãos. O Partido Nacionalista Ateu tem como prática corrente queimar crianças cristãs e muçulmanas como forma de tortura, deixando-as com marcas físicas e psicológicas profundas para toda a vida.
É claro que este texto é uma enorme mentira, mas passa a ser verdade se, em vez de ateus, falarmos de budistas no primeiro parágrafo, cristãos no segundo, judeus no terceiro, muçulmanos no quarto e no quinto, hindus no sexto.
Os ateus são os únicos cuja condição é pacífica e pacifista. A razão é simples, são os únicos que aceitam a vida como ela é e as pessoas como elas são, colocando todos neste planeta ao mesmo nível de importância, ou seja, ao seu direito de existência.
Os ateus são os únicos que não se puseram a inventar histórias manhosas de mulheres que nascem a partir de costelas de um gajo qualquer, de um tipo barbudo que transforma água em vinho, de virgens no céu à espera de mártires ou outra coisa qualquer.
As religiões são todas uma tanga, o que até não fazia mal nenhum se essa tanga não se tivesse transformado numa via para atingir os poderes económico e político. Mas atingiu, e é em nome de historietas de merda que todos os dias temos más notícias nos jornais e gritamos "Ai, meu Deus!".
Boa Páscoa, é o que vos desejo como ateu que sou.

3.22.2016

traço de giz

Quando eu era criança pensava que os aviões deixavam no céu traços de giz. Pelo menos, embora a escalas diferentes, eram iguais aos que eu podia fazer no quadro negro de ardósia da minha escola. Claro que uma vez apanhei. Passei o recreio a desenhar percursos feitos por aviões e risquei o quadro todo. O mais grave nem sequer foram os riscos, foi ter acabado com um pau de giz inteiro. A minha professora perguntou-me o que era aquilo e eu respondi-lhe que era um céu cheio de aviões.

- Dá cá a mão!

E eu dei. Levei cinco reguadas. Nem me estou a queixar. A minha professora batia com a mesma leveza duma borboleta a pousar num ramo de árvore. De todas as reguadas que apanhei, só me lembro de me aleijar uma vez. Quando ela percebeu que tinha excedido a força, levantou-se e abraçou-me. Não chorei pela dor, mas chorei pelo abraço. Foi aquele momento de franqueza emocional de um adulto que me destruiu por dentro.
Sem ela e eu sabermos, nesse dia ensinou-me muito mais do que aquilo que era suposto. O abraço dela eternizou-se em outros abraços que entretanto recebi, quando foram iguais ou surgiram no mesmo âmbito. Alguém que me aleijou primeiro decidiu abraçar-me depois e eu chorei. Choro sempre, mesmo que não lacrimeje.
O Luís riu-se de mim quando viu a minha dor e teve que apagar todos os riscos que eu tinha feito. Alguns vinham de África e iam para o norte da Europa, outros voavam entre a América do Sul e a Ásia. Todos os riscos tinham uma origem e um destino no momento em que eu os fazia. Um voava entre Ouagadougou e Oslo, as cidades mais importantes do meu imaginário de criança. Uma porque tinha um nome giro, outra porque tinha vikings.
Nunca deixei de acreditar nos traços de giz e é assim que me lembro da minha paixão pela Joana. Tinha uma camisola com muitas riscas fininhas de cores diferentes e um casaco amarelo manchado pelo verde da relva onde nos deitávamos a olhar para o céu. Às vezes passavam algumas nuvens, outras vezes passavam pássaros ou aviões. Quando não passava nada, passávamos nós. Num beijo ou num abraço.

- Aqueles traços são de giz! - dizia eu.
- Não são nada.
- Então são de quê?
- Isso não sei, mas não são de giz.

Depois abraçava-me outra vez.
Talvez o Amor entre um homem e uma mulher tenha sempre alguma coisa dos tempos em que somos nós a desenhar o mundo e não o mundo a desenhar-nos a nós. É a maior vantagem de ser criança, aliás, podermos decidir que o mundo é o que nós queremos que seja. Mesmo no Amor.
Não sei quantos Amores já perdi por me apaixonar por mulheres que vêem o mundo como ele é e apenas como ele é. Talvez por isso mesmo este frio início de Primavera tenha sido tão quente. Deitámo-nos no chão do terraço da casa dela a olhar para um avião que voava entre Burkina Faso e a Noruega. Ela ofereceu-me um livro de banda desenhada sobre um traço de giz no meio do mar e no meio de nós. É de um autor galego chamado Miguelanxo Prado. Depois abraçou-me e disse-me que eu tinha razão. 

- Razão em quê?
- Os aviões deixam traços de giz.



3.21.2016

respostas a perguntas inexistentes (372)

São duas e dezasseis da manhã. Não tenho relógio nem telemóvel comigo, mas acabei de passar por uma janela aberta e lá de dentro veio um grito que picou o silêncio como uma agulha: "São duas e dezasseis da manhã! Deita-te!". É por isso que sei as horas. A noite é de seda escura.
Era uma voz de mulher, talvez a mandar o filho para a cama. A rua onde caminho atingiu o seu ponto mais alto e posso ver a cidade que se estende até ao mar. Algumas luzes pairam acesas no céu e confundem-se com o céu estrelado. Talvez nelas haja mais mães a mandar um filho para a cama. Talvez um casal ainda discuta o péssimo domingo que teve ou um pai fume um cigarro cansado. Em cada luz acesa podem estar duas pessoas que se encontraram por acaso na vida, se apaixonaram e agora estão ali num gesto comum qualquer às duas e dezasseis da manhã. Talvez haja sexo por aí.
Uma vez percorri esta mesma rua de mão dada, também durante a noite. Estava apaixonado e não reparei em nenhum ponto brilhante na sombra de um edifício. Queria chegar a casa o mais depressa possível para curar o corpo da minha bebedeira de Amor. Talvez alguém, como eu, tenha reparado nesse dia na luz acesa da minha casa e pensado exactamente o mesmo que eu.
Quando duas pessoas se apaixonam, depois do Amor e do corpo, querem o conforto que um gesto comum pode dar às duas e dezasseis da manhã. Se o tiverem, estão bem.

3.18.2016

respostas a perguntas inexistentes (371)

fazer tempo

Às vezes falamos ao telefone. Ela conta-me tudo o que não se passa com ela e eu conto-lhe tudo o que não se passa comigo. É sempre assim, quando duas pessoas mantêm uma distância táctica entre si. Contam tudo uma à outra, menos aquilo que são e que vão sendo.
É o estado da não paixão. Não se apaixonaram, mas têm pena. Se o tivessem feito, talvez fosse bom. É uma tristeza não controlarmos as nossas paixões.
Hoje foi um desses dias. Falámos ao telefone e ela disse-me que estava a fazer tempo antes ir trabalhar. Imaginei-a em casa, encostada a uma máquina parecida com qualquer uma da Revolução Industrial. Ela rodava uma manivela e do outro lado saíam relógios cujos ponteiros rodavam em sentido contrário. Fazia tempo, portanto. Se um desses relógios rodasse duas horas, era duas horas que tinha feito.

- Ninguém faz tempo, Marta. O tempo está feito e vai passando por nós.

Ela riu-se. Depois gastámos um quarto de hora do nosso tempo a contar o que não se passa connosco. É de livre vontade e sabe bem. O tempo é o preço que pagamos para estarmos com quem nos faz sentir bem.
Combinámos mais um café, este fim de semana no sítio do costume. Não fazemos tempo, mas temos que saber o como gastamos. O tempo é a nossa única fortuna incalculável.
E ela tornou a sorrir.

3.17.2016

conversa 2193

Ela - Gosto de estar quieta durante o sexo e os homens não percebem isso...
Eu - Quieta?! Quieta como?
Ela - Precisamente. Todos reagem assim.
Eu - Mas... pudera...
Ela - Pudera porquê?
Eu - Não é um bocado difícil teres sexo sem te mexeres?
Ela - Eu mexo-me. Sou é pela lei do menor esforço.
Eu - Talvez não devas dizer isso como cartão de apresentação.
Ela - E não digo. É durante o acto que normalmente o problema se coloca. O último palerma com que estive disse-me: "vê lá se te mexes rapariga!"
Eu - E mexeste-te?
Ela - Sim. Pus o gajo a andar e fui lavar a louça.

3.16.2016

respostas a perguntas inexistentes (370)

fixe

É madrugada de um dia qualquer. Pela primeira vez em muitos dias tive uma noite de sono como as pessoas normais, aquelas que se deitam à noite e levantam de manhã para ir trabalhar, que se apaixonaram várias vezes quando tinham vinte anos, apenas uma quando tinham trinta e nenhuma depois disso ou, se o fizeram, foi num segredo tão grande que nem elas perceberam.
O Sol de Inverno percebe-me, no entanto. Talvez por isso me tenha vindo cumprimentar enquanto bebia o café da manhã na janela da cozinha. Tenho quase quarenta e cinco anos e a minha vida tropeçou enquanto subia a montanha, seja lá isso o que for. Andei aos trambolhões até parar junto a uma queda de vários metros. Foi-se o emprego, foi-se a conta bancária, foi-se o Amor também. Veio uma mão levantar-me e aqui estou eu, a tomar café na janela da cozinha.
Lá fora, numa rua pouco movimentada, um puto joga sozinho à bola chutando-a repetidamente contra a parede de um prédio. Tem piada, é mais ou menos o que eu tenho feito nos últimos anos da minha vida. Se ele olhasse agora para cima, acho que lhe fazia um sinal qualquer com a mão. Fechava-a e esticava apenas o polegar, por exemplo. Fixe.
Pondo a mão no vidro, sinto algum calor da nossa estrela. Sei que o seu tamanho é trezentas e trinta e três mil vezes o da Terra. Ainda assim, tão delicado que me vem aqui aquecer sem me incendiar ou queimar. Toca-me como se fosse um imenso monstro bom. É como o Amor. Quando acontece, claro. 
É também como o sorriso da mulher que me disse precisamente isto e por quem me apaixonei durante uns minutos. Cruzámo-nos no café e ela reconheceu-me de um tempo distante. Bebemos uma cerveja e conversámos sobre as nossas montanhas e as nossas quedas. Uns minutos, talvez vinte. Uma eternidade para quem se sentia estéril até então.
Vem aí uma vida inteira, diferente do que foi até aqui. Um resto de café já secou no fundo da chávena que tenho na mão esquerda e, com a direita, faço o sinal de fixe ao miúdo que está na rua. Ele responde. Algumas pessoas normais caminham sob o mesmo Sol que eu. O que nos distingue talvez seja apenas isso: ainda me apaixono por aí. Fixe.

3.15.2016

coisas que fascinam (210)

fotografia

A beleza física interessa, claro que sim. Não é daquela beleza que leva uma mulher a ser Miss Colômbia que falo. Mas é beleza, é corpo e é importante.
Falo da beleza que leva um homem a conhecer uma mulher através duma fotografia, mesmo que não a tenha conhecido pessoalmente nem sequer por cinco segundos. A beleza que lhe permite imaginar-lhe uma voz, um comportamento, um abraço, um beijo ou uma frase. Na verdade, permite-lhe imaginar cada segundo sobre ela.
É muito possível que ela não corresponda a nada disso. Não faz mal, porque chega para ele se apaixonar por ela. É por isso que a beleza física interessa. 

algumas gaivotas estavam em terra

Sempre que me lembro dela, lembro-me também da sua mão direita, engelhada e trémula a esforçar-se por levar um cigarro à boca. Quando a conheci, foi o que me marcou. Quando me despedi dela também. Disso e, claro, de tudo o que ela me ensinou sem sequer se aperceber. E enquanto ela fumou o primeiro cigarro nessa tarde, em silêncio total, dei-me conta de que o vento soprava nas nuvens com mais intensidade do que o habitual.
O vento traz sempre essa mensagem consigo, a de que o tempo está a passar mesmo quando não estamos a fazer nada que nos pareça importante. Se o mundo está quieto, o tempo também está. Se o mundo se mexe, como as nuvens neste caso, o tempo conta. 
Quando tirei os olhos do céu, ela sorriu-me como se estivesse a ler-me o pensamento. Sufocou a beata na areia e depois guardou-a num guardanapo que colocou dentro da carteira, para não a deixar ali a poluir a praia. E foi nesse momento que me senti um felizardo por, nessa tarde, uma mulher com mais trinta anos do que eu me ter perguntado se se podia sentar ao meu lado numa praia deserta.

- Está triste?

Eu não sabia como estava, por isso demorei alguns segundos a responder. Tinha-a visto passear junto às ondas e a molhar os pés calçados sem sequer tentar evitá-lo. Lembrando-me disso, fiscalizei-lhe as sapatilhas de pano. Estavam húmidas e cheias de areia. 

- Estou desconfortável, é só isso...

O que me soube bem naquela mulher foi ela não ter respostas fugitivas. Não me disse que eu era demasiado novo para isso, não me mandou para um sítio mais confortável nem me perguntou porquê. Nem sequer me tentou explicar nada sobre a vida. Limitou-se a aceitar o que eu lhe dissera, sem me chatear com questões mais pequeninas do que aquele momento.
Algumas gaivotas estavam em terra.

- Há uma altura em que nos conformamos com a solidão... - Acabou por segredar ao vento que ainda contava o tempo.
- Que altura é essa? - Perguntei.
- Não sei. Sei apenas que me lembro do momento em que percebi que nunca mais na vida ia Amar um homem.

Uma das gaivotas levantou voo e passou bem perto das nossas cabeças. Tive a sensação estúpida de que a nossa conversa a tinha incomodado, como se estivesse a perturbar o andamento natural das coisas. Quis perguntar se esse momento tinha sido triste, mas faltou-me a coragem. Por isso acabei apenas por consentir a frase.

- Hum, hum...
- Foi um momento de libertação, apesar de tudo.

O frio veio ouvir a nossa conversa e ela pediu-me que a ajudasse a levantar. Tive medo de lhe quebrar algum osso, por isso a operação demorou mais do que seria de esperar. Depois convidou-me para jantar na casa dela, ali a poucos metros da praia, onde eu acabei por passar dois ou três dias.
Hoje estava a ler a notícia sobre a morte de um actor que tinha aproximadamente a mesma idade dela e revivi estes dias. Da minha janela via as nuvens a correr no céu. O tempo passa, mas não apaga as nossas memórias.  Nem sequer essa, da mão dela trémula a tentar levar um cigarro à boca.

3.14.2016

coisas que fascinam (209)

De certa forma, apaixonamo-nos para podermos tocar no mundo. O mundo em que vivemos, apesar de pequeno no universo, é demasiado grande para nos apercebermos dele duma só vez. Então apaixonamo-nos, porque o Amor é a única forma de termos um mundo só para nós, que é simultaneamente pequeno o suficiente e grande que chegue.
Quando não Amamos ninguém, é o mundo que apesar de grande nos escapa por entre as mãos. Podemos ler todos os livros, ouvir todas as músicas, ver todos os filmes e até viajar incessantemente que não conseguimos ter toda a percepção dele, simplesmente por não o podermos partilhar com ninguém. 
Quando, depois de um período de solidão, nos apercebemos da capacidade que temos para nos apaixonarmos outra vez, é do mundo que temos fome. Porque é nele que está tudo aquilo que nos liga ao nosso Amor: um bilhete de cinema, uma cama no quarto ou uma música nas ondas hertzianas.
Não toco no mundo há algum tempo, mas entretanto já me apeteceu.

3.13.2016

pensamentos catatónicos (347)

Gostava de me conhecer melhor. Às vezes parece que sou um pouco tímido e não me digo tudo o que me passa pela cabeça, sobretudo no que diz respeito ao Amor. Não é bem vergonha, é timidez. É como se eu pensasse que não tenho estofo suficiente para aguentar o que eu tenho para me dizer.
Hoje convidei-me para tomar um café, num sítio onde costumo ir e gosto muito. Aceitei, mas acabei por não me dizer nada do que tinha para me dizer. Na verdade, o facto de não estar disponível para me ouvir contribuiu um bocado. Aliás, das poucas coisas que me disse foi isso mesmo: "se vieste aqui para não ouvir, mais valia não teres vindo!". Mas não me liguei.
Sinto-me um bocado distante de mim mesmo, como se a minha relação comigo estivesse por um fio. Quando a comunicação termina é porque terminou tudo. Depois do café perguntei-me "já bebeste o café e posso ir embora?". Estava para não responder, mas acabei por concordar. Afinal de contas, não sou o único com quem isto me acontece.
Há uns tempos convidei a M. para um café e foi igual. Ela ficou o tempo todo em silêncio, a olhar para mim como se a sua presença fosse ao mesmo tempo um favor e um incómodo. Ia perguntar-lhe como anda, mas tive a sensação que não queria responder. Igualzinho a hoje, portanto.
Nunca me perguntei, nunca me respondi.

3.11.2016

atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher

E ela disse que atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher. Falava do marido, na caixa de um supermercado, para explicar à empregada que ele era muito importante na terra onde vivem, mas ela também, por estar atrás dele.
O que eu sei é que nunca ouvi ninguém dizer o contrário, que atrás de uma grande mulher há sempre um grande homem, talvez porque quem diz estas coisas nunca espera ver uma mulher à frente de um homem.
Se atrás de um grande homem há sempre uma grande mulher, quer dizer que atrás de um homem pequeno também pode haver uma grande mulher. Já as mulheres pequenas confinam-se aos traseiros dos homens também pequenos. Há, portanto, mais mulheres grandes do que homens. Ainda assim, sugere-se que uma mulher nunca aparece à frente.
Outro problema semântico deste provérbio é que assume que atrás de um homem pequeno nunca há uma grande mulher, ou seja, a grandeza de um homem é determinada pela mulher que lhe segue atrás. Se ela é pequena, ele também.
Ficamos a saber que os homens para serem grandes precisam duma grande mulher e que as mulheres estão destinadas a andar atrás. E eu, que me lembro de um anúncio rodoviário em que um homem dizia que com ele a criança ia sempre atrás, não consigo deixar de pensar na pequenez de quem diz estas coisas.
Pus na passadeira rolante um saco com pão e uma garrafa de vinho branco. Fiquei a olhar para eles. Tinham, de facto, o mesmo tamanho. Ela arrumou todas as compras em sacos e ele, um pouco à frente, impávido e sereno, não fez nada a não ser pagar a conta. Ele é o presidente da câmara duma terra de que não percebi o nome. Grande homem, portanto. Ela é a mulher dele. Grande mulher.
Esclareceram-me!

3.10.2016

coisas que fascinam (208)

Do que me lembro quando me lembro de ti.

De um dedo cortado numa lata de atum que ias juntar a uma outra de feijão frade, mais dois ovos cozidos e alguma cebola cortada bem fininha. De me pedires um penso rápido e eu enrolar-to no indicador da mão direita que depois beijei e, por fim, de pousares a tua cabeça no meu peito e abraçares-me.
De um livro cansado na mesa de cabeceira e de um televisor neurótico na cómoda do quarto. De te pedir para baixares o som e tu me mandares calar e ler e depois, arrependida, de pousares a tua cabeça no meu peito e abraçares-me.
De um copo de vinho numa esplanada de praia e do vento que o tombou e partiu. Duma nódoa na tua saia branca e de me dizeres que ia ser difícil de a tirar, mais uma discussão com um empregado que queria que pagasses o estrago. De ti nervosa e eu a dizer para irmos embora e, por fim, de pousares a tua cabeça no meu peito e abraçares-me.
Sei que a nossa história foi curta e simples porque todos os caminhos vão dar à tua cabeça no meu peito e os teus braços à minha volta, e então tenho a certeza que foste boa. É do que me lembro quando me lembro de ti.

3.08.2016

duas moedas numa mão

Normalmente eram cinco homens. Um deles em pé a gesticular e os outros sentados em esqueletos de cadeiras a ouvir-lhe o vinho zangado. Não me lembro das palavras, lembro-me da fúria e das moedas que a minha mão de criança não conseguia esconder. Uma de um e outra de cinco escudos para comprar o jornal diário para o meu pai.
Era o que mais se vendia na taberna do senhor Seabra, vinho a copo e jornais diários. Os homens sentavam-se lá dentro a beber e eu escondia-me na curva do balcão amarelo pálido, esticava o braço e esperava que ele viesse lá de dentro, já com o jornal na mão, atender-me. Às vezes, raramente, pedia-lhe um copo de gasosa que custava dois e quinhentos.
O homem de que melhor me lembro tinha um bigode grande e costumava ficar em pé a impor a sua versão sobre tudo e sobre todos. Os outros ouviam-no com a atenção que o álcool ia permitindo e às vezes acenavam com a cabeça. Eram eles lá dentro e o mundo lá fora, sempre em total oposição. Assustavam-me. A minha forma de chegar ao balcão sem ser visto foi a minha primeira guerra de trincheiras.
Houve uma manhã em que fui apanhado. Estiquei o braço para que o senhor Seabra me visse e senti duas mãos a tentar abrir a minha. Olhei para cima e era ele, cujos berros se tinham transformado num silêncio ensurdecedor. Fechei os dedos com toda a força, mas ele foi mais forte. Tirou-me as duas moedas e sorriu da mesma forma que o Diabo deve sorrir quando recebe uma alma. Depois esticou o dedo indicador da mão direita e encostou-o aos próprios lábios como que a mandar-me calar.
Nesse dia não levei o jornal para casa e disse ao meu pai que tinha perdido as moedas. Não sei porque é que não lhe contei a verdade, mas de facto nunca o fiz. Sei que a partir desse dia comecei a comprar o jornal num quiosque que ficava bastante mais longe. Tinha perdido a guerra das trincheiras e agora fugia cobardemente dela todos os dias.
Só vi esse homem odioso uns cinco anos mais tarde, tinha eu uns doze. Estava a voltar da escola e uma pequena multidão juntara-se à porta dessa taberna. Aproximei-me para ver o que se passava e vi-o prostrado no chão, camisa rasgada, cheiro a vinho e sangue a escorrer-lhe pela cara. Outro homem, um pouco mais novo, tentava soltar-se duma boa dúzia de braços que o queriam agarrar. Lembrei-me da minha luta para segurar as duas moedas na mão e desejei que ele tivesse mais sucesso do que eu.

- Ele matou a minha irmã! Ele matou a minha irmã! Ele matou a minha irmã! - Repetia.

Percebi tudo pelas conversas dos que assistiam àquele combate. O mesmo homem que me roubara as moedas uns anos antes tinha assassinado a mulher à pancada. Foi, talvez, a primeira vez que percebi o que é violência doméstica. Fugi para casa.
Este ano faço quarenta e cinco anos. Dou ao Dia da Mulher um significado político porque sei como ele surgiu e porque é que surgiu, mas também porque entretanto já ouvi falar em violência doméstica mais umas centenas de vezes.
Sempre que tenho duas moedas numa mão, esta história vem-me à memória.

3.07.2016

conversa 2192

Ela - Estou tão farta de homens.
Eu - Queres que eu vá embora?
Ela - Não. Tu não és bem homem...

3.04.2016

coisas que fascinam (207)

O que o Amor nos permite é interromper a vida de vez em quando. É essa a sua maior vantagem, podermos dizer à vida que espere um bocadinho porque temos coisas mais interessantes para fazer, seja sexo, um passeio à beira-mar ou um abraço apertado.
Lembro-me de uma namorada minha se ter sentido mal num restaurante perto de Castelo Branco. Ajudei-a a sair e sentei-a num muro exterior que dava para a estrada. Depois sentei-me eu ao lado dela e amparei-a com o meu abraço. Às vezes ela afastava-se para vomitar e eu sofria por vê-la sofrer, mas nos intervalos de acalmia sentia-me o homem mais feliz do mundo. Os carros passavam na estrada em velocidade cruzeiro, as nuvens passavam no céu, os números passavam nos nossos relógios, mas nós não passávamos em nada. Estávamos ali a ver como era a vida a passar. Só isso. E era bom.
Quando não Amamos ninguém estamos sempre a viver. Não é que viver seja mau, mas assim sem interrupções pode cansar um bocado. Aliás, sempre me pareceu que é a vida que estraga o Amor e não contrário. O Amor tenta ajudar a vida mas ela não costuma deixar. Depois trama-o.
Quando finalmente nos decidimos a voltar para casa, a noite já tinha caído. Os carros passavam menos, o céu não se via e as horas não importavam. Tive a sensação de que a vida desacelerara um pouco para permitir que o nosso Amor continuasse para além dessa tarde. Tínhamos algumas horas de estrada pela frente e ela deu-me a mão sempre que a condução o permitiu.
No silêncio da noite, decidi-me a escrever qualquer coisa sobre o que senti nessa viagem, mas nunca o fiz. Até hoje, dia em que já nem sequer sei onde ela está.
Sejam felizes!

3.03.2016

pensamentos catatónicos (346)

Não estou apaixonado por ninguém. Não há nenhuma mulher especial na minha vida, se eu esquecer o facto que são todas especiais e de que a amizade também o pode ser. Não há nada de anormal nem de preocupante nisso, tirando o pormenor de que é a primeira vez que me acontece, apesar de ter quase quarenta e cinco anos de vida.
É uma experiência nova, portanto. Às vezes sinto-me mais livre do que nunca, outras vezes sinto falta dum abraço mais íntimo. É isso que sinto, de forma suave, nos dias que correm, mas sempre sem o desejo de voltar a apaixonar-me no segundo seguinte. Para meu conforto, vou acreditando que talvez um dia isso aconteça.
Houve uma excepção, ainda que ténue. Acho eu, pelo menos. Caminhámos pela cidade e bebemos vinho, contámo-nos um ao outro e trocámos olhares, abraçámo-nos e atravessámos passadeiras com o sinal vermelho para peões. Imaginei-me a viver com ela e a fazer isso mais vezes, atravessar no sinal vermelho em passo apressado e rir-me disso com alguma cumplicidade. Foi a única vez. Foi só imaginação.
De resto foi tudo em esforço. Ou quase. Acho eu, pelo menos. Tirando aquela vez em que falámos de comediantes e eu disse que não percebia como é que um homem pode exercer essa profissão todos os dias. E quando está triste? Perguntei. E se a mulher o deixou nessa manhã e ele tem que ir para a rádio contar piadas? Perguntei de novo. E ela encolheu os ombros. Depois bebemos vinho e adormecemos juntos. Quando acordámos não ficámos felizes por estarmos perto um do outro. Nem eu, nem ela. E eu despedi-me.
Às vezes caminho pela rua sozinho, de preferência em locais movimentados. Vou-me desviando dos outros com a perfeita consciência que eles são isso mesmo: outros. Foi o que fiz hoje. Lembro-me de um casal de estrangeiros que me perguntou a localização de um hostel, de um rapaz que passou por mim de skate a cantar uma música sem sentido, de uma mulher que me sorriu na porta de uma pastelaria e do padeiro que me disse para esperar pelo pão quente.
Depois sentei-me na estação de comboios, apesar de não estar a pensar apanhar nenhum. Lembrei-me de uma mulher, um Amor antigo numa situação específica. Ela a pedir-me para abrir uma garrafa de vinho, eu a encher-lhe o copo e ela a desaparecer pela porta da cozinha. Vai dar uma volta, disse. Não me apetece estar com ninguém por um bocado, insistiu. O ninguém era eu, até porque toda a gente naquela casa também era eu.
Esforçarmo-nos por nos apaixonarmos é um acto estúpido e inconsequente. A paixão nunca vem por esforço. Vem porque lhe apetece, seja amanhã ou daqui a cinco anos. Vem no dia em que eu tornar a atravessar na passadeira com o sinal vermelho, rir-me disso e no dia seguinte gostarmos de acordar juntos. Talvez nessa noite ela me peça para abrir uma garrafa de vinho e não saia da cozinha.
Até lá, apesar de não ter público, vou tentar ser comediante todos os dias.

3.02.2016

pensamentos catatónicos (345)

a gestação do Amor

Nunca declarei Amor a ninguém antes dele me acontecer. Declarar um Amor antes do tempo é como fazer uma pergunta à qual o outro não pode responder negativamente. É uma pressão muito grande, convenhamos, levar com uma declaração dessas por parte de alguém de quem não gostamos assim tanto. Temos que escapar pelos intervalos da chuva com um atrapalhado "não estou preparado" ou "deixa-me pensar". Depois de um Amor acontecer e enquanto ele dura, seja um mês ou cem anos, tento tento declará-lo todos os dias. Antes disso não. 
A melhor forma que um Amor tem para nascer não é uma negociação serôdia e verbal, mas sim um caldeirão de impulsos, saliva e suspiros. Por isso mesmo é que a cama é o melhor sítio para declarar esse Amor. Depois de e não antes de. Chama-se intimidade e é um dos condimentos essenciais de qualquer paixão.
Antes do nascimento, porém, o processo do Amor não é um vazio. Muito pelo contrário, está na sua fase de gestação, que pode ter durações tão variadas quanto o próprio Amor em si. Na gestação do Amor não o declaramos, mas manifestamo-lo. Jogamos às escondidas querendo ser apanhados e interessamo-nos quando às vezes mostramos desinteresse, aproveitando cada momento como se tentássemos agarrar água e sofrendo cada ausência como se estivéssemos a perder uma guerra.
A gestação do Amor é essencial para percebermos se estamos apaixonados ou não. A cama também. Antes disso, não declaremos o que ainda não existe. 

3.01.2016

respostas a perguntas inexistentes (369)

A saudade de um Amor nunca morre. Adormece, mas nunca morre. 
É por isso que, com o tempo, torna-se mais difícil apaixonar-me por alguém. Um Amor tem que ser forte e intenso, mas não pode acordar os anteriores. Esta verdade não é má. Aliás, é essencialmente boa. Torna o Amor mais raro, mas também melhor. Mais acolhedor.
A saudade de um Amor acorda com as coisas mais simples e essenciais da vida. Uma fotografia, uma canção, um copo de vinho ou um cheiro. Qualquer momento que me transporte para um momento passado de intensa felicidade e ela, a saudade, desperta como se fosse uma princesa adormecida numa história da Disney.
Amar depois dos quarenta é mais assim, sempre com um passado. Às vezes acho que a maior parte das pessoas pensa que dois quarentões Amantes devem esquecer os seus Amores passados. Eu discordo. Devem sempre lembrar-se, mesmo que durante o sono. É a única forma de cada vez se Amar melhor e haver uma hipótese de não sair desiludido da coisa.
Só quem se lembra dos seus Amores passados pode apaixonar-se a sério outra vez, sem ter que fazer um reset à vida para esquecer tudo aquilo que viveu. A esse propósito, quem é que quer ao seu lado na cama quem não se lembra de viver nada? Eu não, certamente.
Marcámos um encontro num bar mal iluminado. Meia hora depois, o copo de vinho dela estava cheio e o meu vazio. Tinha sido assim toda a noite, com ela cheia de tudo e eu vazio de nada, a ouvi-la falar dos Amores passados que eu, por manifesta incapacidade de a Amar, tinha despertado.
Depois acordou. Perguntou-me se estava falar demais da sua vida. Respondi-lhe que a saudade de um Amor nunca morre. Adormece, mas nunca morre.