4.02.2023
1.31.2023
A Dança das Folhas
Lembro-me de algumas folhas secas outonais que dançavam na rua deserta ao som de um vento harmonioso. Primeiro pensei que fossem alguns pardais a lutar por algumas migalhas de pão esquecidas no alcatrão, mas depois percebi que não.
O táxi tinha-me deixado ali com duas malas grandes e um saco de desporto igualmente generoso no tamanho, a dona do hostel onde eu alugara um quarto barato à pressa no terminal dois do aeroporto de Sófia ainda não tinha chegado para me abrir a porta e portanto restava-me esperar. Os meus olhos saltavam entre essa tola dança das folhas de árvore e toda a minha bagagem como uma bola de ténis batida lentamente por dois jogadores que nunca falham, quando se concentravam nas malas mergulhavam também na minha própria vida, que começava ali do zero outra vez.
Tinha quarenta e quatro anos e uma sucessão de empregos mal pagos, recorrentemente com salários em atraso, que mesmo assim todos somados não chegavam ao montante das minhas dívidas. A sensação era a de que o país onde eu vivera a maior parte desses anos me abandonara e como qualquer homem abandonado decidira afastar-me. Sem amuos. Apenas afastar-me.
Até àquele momento a minha vida na Bulgária resumia-se a uma conversa com o taxista sobre os jogadores búlgaros que tinham passado por Portugal e a esse primeiro momento de paz. Paz porque estava longe, só isso. Eu ainda não fazia ideia de que a minha próxima companheira de vida seria búlgara e que a ia conhecer num jardim não muito longe dali cerca de três meses depois.
O ano era 2016 e não estávamos no Outono mas sim no fim de Março. Foi também nesse ano de recomeço que me fui desligando deste blogue que começara dez anos antes, após o meu primeiro divórcio. Desde então muita coisa mudou e hoje vivo no Reino Unido, numa pequena cidade chamada Newcastle Under Lyme. A S. veio comigo, ou melhor, veio ter comigo meio ano depois da minha partida da Bulgária para este país e ainda cá está. Quer dizer, ainda cá estamos.
Vou com cinquenta e um anos de idade e apetece-me escrever de novo sobre os dias que passam. Vou fazê-lo aqui, recomeçando sem apagar o passado, alternando o meu olhar entre o que me rodeia e eu mesmo. Talvez as folhas ainda dancem de um lado as minhas malas cheias de nada ainda estejam por abrir. Vocês são bem vindos. Se quiserem, claro.
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5.17.2020
O Síndrome do Peixinho Vermelho
Estou com o síndrome do Peixinho Vermelho, disse ela. Estávamos numa floresta dum país que não era o nosso, até porque eu sou português e ela de lugar nenhum. Só me lembro que as árvores eram muitas e cada uma se tinha vestido duma cor diferente, como se estivessem num baile de finalistas.
E eu perguntei-lhe que raio de síndrome é esse. Não perguntei porque realmente estivesse interessado em saber, mas sim porque tinha acabado de me apaixonar por ela. Sempre que me apaixono por alguém e não tenho coragem de o dizer, faço perguntas. Sabia que se ela fosse respondendo, pelo menos ficava perto de mim.
A alguns metros de nós seguia um lobo que de vez em quando se aproximava apenas para pedir uma festa no focinho. Era esse o pagamento para ele nos guardar. De vez em quando rosnava para afugentar os sinais de vida que se moviam por ali como se fossem um vento esguio. Eu não os via, mas sentia-os a abanar as folhas e os ramos coloridos.
E então ela explicou-me o síndrome. É ouvir a mesma música muitas vezes seguidas com auscultadores como se a nossa vida dependesse disso e reparar que as pessoas falam umas com as outras como se fossem eternas.
Eu sorri. As árvores dançaram num assobio e o lobo rosnou. Não sei muito bem explicar porquê, mas foi a primeira vez que fiquei realmente feliz por ele estar ali. Aproximou-se e fiz-lhe uma festa.
E eu perguntei-lhe como é que as
pessoas que pensam que são eternas falam. Não que eu quisesse
realmente saber, claro. Falam das coisas que não interessam nada
para sermos felizes mas sim e apenas para uma entidade abstrata
qualquer chamada Economia, disse. São como aqueles peixinhos vermelhos que andam sempre em círculos num aquário redondo.
O lobo rosnou. As árvores fizeram silêncio. Eu também.
E ela olhou para mim e disse-me para
continuar a fazer perguntas. Enquanto eu as fizesse, ela responderia
e ficaria perto de mim. Precisava saltar fora do aquário.
Pode não parecer, mas esta é uma história de Amor.
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2.19.2020
pensamentos catatónicos (351)
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2.17.2020
Nazdrave
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3.18.2019
Aveiro
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3.14.2019
Nunca sabemos do que são feitos os outros
Nunca sabemos do que são feitos os outros é a minha segunda crónica na AveiroMag, que me vai permitindo abrir o meu álbum de memórias de uma cidade distante. Obrigado a todos os que abdicam um bocadinho do seu dia para passarem por lá.
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3.13.2019
a mulher do táxi
Uma vez apaixonei-me por uma mulher num táxi. Como não lhe vi a face, do que me lembro é das luzes tristes dos candeeiros públicos da cidade e da estrada a passar por mim da mesma forma que todos os outros Amores da minha vida já tinham passado.
Quando abri a porta de trás para lhe perguntar se me podia levar até ao bairro de Darvenitsa, ela não virou a cara. Disse "da", que em búlgaro quer dizer sim, e fixou o olhar no vidro da frente como se a vida não tivesse mais opções do que seguir por aí, sempre em frente.
Ia a chorar e tinha olhos negros. Mais negros do que a noite, digo. E grandes. Vi-os no espelho retrovisor central durante dois ou três segundos. Por qualquer motivo que não sei explicar, percebi que ela chorava por Amor. Talvez tenha sido o choro, que é sempre diferente dos outros choros.
Todos sabem que chorar por Amor é fazer um pedido à vida, que uma situação se reverta. Depois, como nunca nada se reverte, deixa-se de chorar e olha-se em frente, o único caminho possível. As lágrimas são uma desilusão porque nunca fazem nada do que lhes pedimos, mas pelo menos servem para percebemos a direcção que devemos tomar.
No rádio do táxi passava uma música inglesa da qual me lembro que o primeiro verso era "In the morning I am a recluse lost in memories, ideal situations and convulsions" e o refrão apenas uma repetição da frase "We don't need nobody else".
Quando ela parou o táxi no bairro onde eu vivia, o contador marcava quase dez levs. Dei-lhe a nota por cima do ombro direito dela e as nossas mãos tocaram-se por um segundo. Depois ela amassou a nota como se odiasse dinheiro e a minha mão caiu-lhe nesse ombro como se fosse um floco de neve. Desejei-lhe boa sorte em pensamento, mas tenho a certeza que ela ouviu como se eu tivesse gritado.
Foi nesse momento que me apaixonei por ela. É impossível não me apaixonar por uma mulher capaz de ouvir o que eu penso.
O táxi dissolveu-se na noite enquanto eu atravessava a estrada. Nunca mais a vi.
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