respostas a perguntas inexistentes (82)
Não faz mal, pensa ela enquanto enquanto encosta a cabeça ao vidro da janela. Do outro lado da rua passa um homem abraçado a uma mulher e isso fá-la sentir-se ainda mais só. E a merda da solidão que anda ali por casa não faz nada: não lava a louça, não passa a roupa a ferro, não aspira e nem sequer faz a cama. Não faz mal, é só um vidro transparente que a separa do mundo lá fora, esse mundo onde as pessoas se abraçam, trocam beijos e palavras doces. É só um vidro, pensa.
Não faz mal. Já os vidros a separaram da felicidade muitas vezes na vida. Era o da montra da lojas de animais quando era criança que não a deixava fazer festas aos gatos; nessa altura, era também o vidro da máquina automática de chocolates na estação. Depois foi o vidro da janela dum autocarro cansado que, durante anos e anos, a levou todos os dias de casa para o trabalho e do trabalho para casa no que parecia ser um monótono vaivém até à morte. Mas não foi, acabou por fugir com o que lhe restava da vida para novas formas de sobrevivência: Limpou os vidros do balcão de um café, depois das janelas da casa dum homem a quem tratava por doutor, depois já nem se lembra... talvez por se ter apaixonado.
Aprendeu com o tempo que os vidros são uma forma cruel e transparente de impedir o contacto entre as pessoas e comprovou-o depois nessa paixão. O amor escoava-se todos os dias mais um pouco, talvez a conta-gotas para lugar nenhum, e o que restava da vida era essa crescente sensação envidraçada. Os beijos passaram a ser distantes e frios, as palavras passaram a ser curtas e de baixa intensidade, o calor dos corpos desapareceu. Era um vidro constante entre eles os dois. E tornou a fugir com o que o que lhe restava da vida, desta vez para uma casa só, em cujo vidro da janela agora encosta a cabeça. Do outro lado da rua passa um homem abraçado a uma mulher. Não faz mal, pensa.
18 comentários:
esta agora...:S...fiquei deprimida...pensando bem...malditos vidros...eu tive uma infância muito feliz e ainda assim privada de muita coisa, no entanto o saldo é positivo...nem sei o que pensar...
Isto é muito triste! Eu não quero ter vidros onde apoiar a cabeça!
Quero um ombro ou um colo quente! E quero ter o mesmo para a pessoa que mo dá!
:(
Agora fiquei triste a pensar "nela"...
Vou levar para o meu professor.
misspiggy, pensa isso mesmo: que o saldo é positivo. :)
miauuu, a ficção nunca é para ficar triste. :)
gigi, :)
Esses vidros fazem nos crescer.
São bocados de uma vida necessários para chegarmos onde é suposto cada um chegar.
Beijo x
P.S.
anónima, concordo contigo, sim... :)
:(
ritinha, não é para ficar triste. :)
Fabuloso!
E por vezes os vidros parecem inquebráveis...
Parabéns pelo blog!
anónimo, obrigado. :)
Eu também fiquei triste...acho que já todos uma vez pelo menos olhámos desta forma por um vidro. "Não faz mal", faz sim a vida é para ser vivida, é ir à "luta". Este hoje foi um pouco forte...que coisa:))))
cristina, é para ir à luta, isso mesmo:)
De tantos que já li é talvez o que mais me "toca". Sublime.
Lindo.
Há milhares de seres humanos assim, sobretudo velhos e que te dizer?
que apesar de nunca ter baixado os braços, não penso no futuro e procurar defesas/ocupações para me manter bem longe do vidro...
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vou ali lavar a cara e já venho!
BELISSIMOOOOOOO e TOCANTEEEEEE
olga, obrigado. :)
pUnChdRuNk-LoVeSiCk, obrigado. :)
fatyly, obrigado. :)
gostei, como sempre gosto quando pões o modo 'rapaz das prosas' em piloto automático :)
beijo
ana dona do café, :)
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