7.15.2007

Summer Interior



Sem querer, o meu ombro beija o ombro dela. Estamos num sofá qualquer, duma casa qualquer, dum gajo qualquer que trabalha num país africano qualquer. É um beijo tão curto e tão brando que não percebo aquele impacto que sinto, de ser um porto abandonado onde ancora um navio. E tudo se distancia de nós e é uma coisa qualquer.
Sem querer, os gestos silenciam os corpos e os lábios dela ainda sabem à sobremesa de morango, cujos restos nos espreitam do chaisse-long. Acho que o pé dela vai acabar por derrubar as taças mas o movimento dos corpos não me deixa falar. O petroleiro atira as amarras ao cais e no porto inicia-se um incêndio. De mim, só os seus olhos se tentam defender, flutuando prudentemente pelo fogo. Talvez tenha medo de se queimar e ir ao fundo, penso, e pergunto-lhe se quer parar. Que sim.
Sem querer deito-me ao longo do sofá, e ela aninha-se nua em mim. Há um quadro de Hooper na parede vomitando solidão: Summer Interior, e já é uma coisa qualquer. Cabe tanta solidão num quadro, penso. Os dedos dela caminham-me pelo corpo, como num anúncio antigo das páginas amarelas, e caminhando-me descobrem alguns segredos.
Sem querer fecho os olhos e os segredos revelam-se devagar. Ouço as taças com sobremesa de morango a cair no chão e a partirem-se. Os cabelos dela são uma chuva miudinha e passageira, irrigando-me primeiro os pés, depois as pernas, depois o peito, depois a face. Depois prende-me a cara entra as pernas. O petroleiro parte as amarras e perde-se num dilúvio.
Sem querer somos peças dormentes do mesmo puzzle, tapadas pelo mesmo fino lençol noctívago. Cuspo dois ou três pêlos púbicos. Ela passa o dedo indicador pelo doce de morango que jaz no chão e depois pelos meus lábios. Adormecemos. É uma noite qualquer, dum ano qualquer, dum século qualquer.

8 comentários:

Elora disse...

Quando escreves textos destes sinto-me voyeur. Como se estivesse a espreitar pela janela a intimidade dos outros.

Ivar C disse...

hum... percebo... não te preocupes. não me sinto vigiado. ;)

Fatyly disse...

Já ontem tinha lido e fiquei sem palavras...e continuo assim.
Dá gosto ler os teus textos. Parabéns!

Ivar C disse...

obrigado fatyly. :)

Anónimo disse...

Hummmmmm que belo sabor a morangos acabados de espremer entre os lábios entreabertos.
Carla

Ivar C disse...

lol, carlinha... ;)

Anónimo disse...

Estás cada vez melhor!

Sentimentos, heim?

Ivar C disse...

obrigado, marta. sentimento que todos temos... :)