7.11.2007

melhor que nada

Encontra-se uma amiga. Bebe-se um copo e depois outro. A conversa abre-se como as pétalas duma flor, e forma uma coroa só nossa. As palavras vão correndo sem se gastarem. Algumas esvoaçam à nossa volta, outras mergulham e afogam-se nas bebidas, outras sentam-se ao nosso lado e dão-nos o ombro.
O amor é um egoísta. Quando nos bate à porta entra e quer tudo para ele. Às vezes até cola um papel na porta da entrada a dizer "não chatear". Consome-nos como o fogo consome um fósforo, o cabrão, e depois só restam cinzas. Vivemos das cinzas, e esquecemo-nos que ainda temos o papel na porta. Ninguém bate.
Vou falando. Vou ouvindo. O copo deixou algumas marcas de líquido na mesa e, com os dedos, vou desenhando sorrisos que se desfazem em segundos. Vou falando e vou ouvindo. A última vez que a encontrei foi assim também. Depois fomos a minha casa, fizemos um chá vermelho que não chegámos a beber, mas cujas canecas cheias ficaram três dias na estante dos cd's. Abraçámo-nos e fiz-lhe um minete. Talvez o minete mais lento da minha vida. Acho que no último e suave gemido ela já estava a dormir. Levei-a para a cama ao colo, tirei-lhe as botas de cano alto e tapei-a com com um cobertor fino. Adormeci vestido ao lado dela, depois dum copo de uísque.
Vou falando. Vou ouvindo. Os olhos dela abrem-se às vezes, e parecem corais abrindo-se debaixo dum mar revolto. Apetece-me nadar para ali. Abrigar-me. Depois deixo de falar e já só ouço. A voz dela enrola-me com um cachecol no Inverno. Ela tem a mão esquerda em cima da mesa, e eu aproximo a minha até lhe tocar com a ponta dos dedos. Já sei porque é que as formigas gostam de tocar com as antenas, digo-lhe. Porque é bom.
Vou falando. Vou ouvindo. Não se chega a esta idade sem ter chorado, pois não? Não faz mal, também não se chega sem querer mais. Que não, dizem agora algumas palavras que saltam na mesa como peixes fora de água: que não gostamos assim tanto um do outro. Mas, e há sempre um mas, talvez hoje seja melhor que nada. O amor é um egoísta, sim, menos hoje. Outra vez.

17 comentários:

Unknown disse...

Bravo, amigo!

Que bela narração! Isto então a ouvir "Kind of Blue" do Miles é a combinação perfeita, I must say! E o copo de whisky? _Deu-me cá uma vontadinha...às 19h? No laboratório? Não pode ser, pois não?

Grande Abraço

Fatyly disse...

O hoje na incerteza do amanhã. Tens metáforas excepcionais. Gostei!

Anónimo disse...

belo. e mentira.

Anónimo disse...

é mentira, mas é belo.poeta.

Anónimo disse...

Podes deixar esquecido o papel "não chatear" na porta mas, deixaste a porta entreaberta :)

Sabina disse...

Demasiado bom para comentar.
Beijos

Robeta de Oliveira disse...

oii!
pode até não compreender as mulheres, mas soube compreender o momento! gostei muito!
bjos t+

Ivar C disse...

alex, no lo creo... :)

fatyly, e tu tens conclusões excepcionais :)

carolina... beijos :)

karla, a porta está sempre, pelo menos, com a fechadura avariada. :)

insaciável, lol, mas tu comentaste. :)

julieta, obrigado. a sério... :)

Patrícia Manhão disse...

Como diz o MEC "O Amor é fodido"...
Gostei muito...está muito bem escrito...e parece-me que aconteceu...escreves lindamente e gosto muito de te ler :)

Unknown disse...

Ola ivar.
Absolutamente maravilhoso ser embalado por essas palavras...
Gostei muito . esta delicioso e genuino.


Comapnheiro de estado

Elora disse...

Parece-se um texto de Inverno, a empurrar para a lareira. Está frio aí ou estás frio?

Ivar C disse...

patrícia, obrigado. ;)

um abraço, companheiro de estado.

elora, a temperatura está irregular. :)

Anónimo disse...

Gostei imenso, mas incomodou-me. Pelo arrepio que senti, pelo egoísmo que reconheço e principalmente pelo MAS, que sempre existe.
O texto é definitivamente MELHOR do que nada, o sentimento esse pareceu-me uma flor sem pétalas, mesmo com a intensidade dos "corais abrindo-se debaixo dum mar revolto (lindo!).
Carla

Ivar C disse...

Carla... obrigado por estares aí... :)

Tangerina disse...

De todas as falhas humanas,o amor e a necessidade que temos dele, é a que mais me assusta.
Porque raramente acontece, porque raramente é gratificante, porque raramente é isento de lágrimas. E porque geralmente nos leva a cometer erros como o de aceitarmos pequenos-amores por serem melhor que nada.

[Escreves tão bem, caramba!]

Ivar C disse...

tangerininha, passo a vida a duvidar se os pequenos amores são ou não um erro... às vezes são, outras não, acho eu.... Talvez nunca sejam um erro se tivermos cuidado e respeitar o Outro...
obrigado pelo elogio. sabe bem... :)

Ivar C disse...

obrigado, joana. :)