pneu furado
Acabei por arregaçar as mangas. Primeiro escondi a cabeça debaixo do guarda-chuva e continuei, em passo apressado, em direcção ao meu escritório e ao meu egoísmo. Depois a chuva molhou-me a ponta dos sapatos e eles pararam, talvez contra a minha própria vontade. Voltei para trás e perguntei-lhe se precisava de ajuda. "Já tentei telefonar ao meu marido mas ele não atende", disse ela, como que a querer manter alguma distância. "Deixe estar, eu troco-lhe isso em dez minutos", respondi. Assentiu.
Trocar o pneu furado ao automóvel duma mulher é um cliché e talvez eu também seja vítima de clichés. No entanto, mais importante do que lhe trocar o pneu, pareceu-me, foi o facto de a ter ficado a ouvir enquanto ela segurava o guarda-chuva que nos protegia a ambos. Entre outras coisas fiquei a saber que o marido, a quem ela supostamente já tentara telefonar, é apenas uma pedra na sua vida. Têm o divórcio marcado e ele até já foi violento com ela algumas vezes na vida. O corpo dela já sarara essas feridas mas a voz não. Ainda sangrava tristeza e solidão.
Apertei bem os parafusos com pé e disse-lhe que podia ir. Perguntou-me se queria boleia para algum sítio, o que recusei prontamente por não precisar de facto. Depois fiquei a vê-la diluir-se no trânsito onde outras tantas histórias parecidas devem circular como colesterol nas veias duma cidade doente. Às vezes é mais fácil abrirmo-nos com um desconhecido do que com um amigo, pensei.
17 comentários:
olá bagaço, esta "historia" comoveu-me ate às lagrimas, sei lá porque. bjs p ti e raquel!
aloucura, beijos para ti. :)
Também fiquei comovida. Tocou-me a imagem da cidade doente. Anda tanta gente a sangrar pela cidade fora.. :(
O corpo dela já sarara essas feridas mas a voz não. Ainda sangrava tristeza e solidão.
Depois fiquei a vê-la diluir-se no trânsito onde outras tantas histórias parecidas devem circular como colesterol nas veias duma cidade doente.
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há mais colesterol do que se pensa e muitas vezes tudo falha desde associações que protegem as vitimas à lentidão da justiça, e de facto essa trauma, angústia, solidão...é muito mais fácil abrirmo-nos com um desconhecido, porque a maioria dos amigos fogem e a família...é o que se sabe!
Só de ler, doeu-me muito e é que dói mesmo!
Foste um gentleman!
E como escreveu a Alexandra em cima, tocou-me a imagem do que escreveste e achei-te incrível por teres parado para ajudar uma desconhecida a mudar o pneu (uma vez um desconhecido também parou para me ajudar e fiquei-lhe muito grata)
um beijinho
Gábi
é mais fácil falar com desconhecido porque não haver julgamento (directo) e não há olhares de "pena"...não conhecem a história "toda"...
;)
mas infelizmente há muitas histórias assim por aí...
fatyly, há muito colesterol, sim... muito mesmo. :)
redonda, na verdade parei à segunda. não à primeira. beijinho. :)
naz, concordo contigo. :)
Houvesse mais gente a parar, ainda que à segunda, e talvez houvesse menos "colesterol" por aí..
Às vezes basta algo assim para melhorar o dia a alguém. E até, quem sabe, para o/a pôr a pensar.
alexandra, é verdade, sim. :)
Não tenho qualquer duvida! Até porque também já o fiz. Muito terapêutico =)
memyselfandi, pronto... há coisas que eu gosto mais de fazer do que mudar pneus... mas agora não posso dizer aqui. :)
Eu acho sempre que é mais fácil falar com um desconhecido. Talvez hábitos de quem esteve do aldo de lá de uma linha anónima.
Ainda assim o falar com um desconhecido é terapêutico. Pode dizer-se tudo sem emdo de se ser mal interpretado.
ana lisboa, obrigado. :)
Eu diria mesmo que é quase sempre tão terapêutico para o ajudado, como para quem ajuda.. ;)
alexandra, exacto. :)
Chato chato era não conseguir tirar o pneu por estar colado e acabar por ter de chamar o reboque.
ups, nem que eu estivesse lá cinco horas. :)
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