5.03.2010

respostas a perguntas inexistentes (84)

o amor enlatado

Detesto o amor enlatado. Aliás, por definição detesto tudo o que vem enlatado, mas no caso do amor ainda detesto mais. O amor enlatado é aquele que se processa industrialmente e traz corantes e conservantes, exactamente como umas salsichas ou sardinhas em tomate. Abrimos, lambemos e até podemos gostar do sabor. O problema é que nunca há surpresas. É sempre aquilo.
Acho que a Barbie e o Ken são os grandes culpados disto tudo, não só por serem dois bonecos estúpidos mas, lá está, por serem igualmente estúpidos. E não é a estupidez que me chateia, é essa igualdade conceptual. Antes de os lambermos já sabemos ao que sabem, tal e qual como nos produtos enlatados. A Barbie é uma miúda afectada que cresceu a ouvir dos mais velhos que era muito bonita, principalmente nas festas de aniversário para as quais os pais, ambos funcionários públicos razoavelmente instalados, só convidavam os filhos dos casais que consideravam pessoas de bem. O Ken era um puto desses, um gajo horrível e convencido, portanto uma pessoa de bem que tratava os pais por você e não saía de casa quando tinha acne.
Não acredito que algum dia a Barbie se tenha realmente apaixonado pelo Ken ou o Ken pela Barbie. Acho apenas que aceitaram a ideia do amor enlatado. Ele tinha tudo para ser namorado dela e ela dele. Tudo, num contexto meramente mediático, entenda-se. De resto nada, é só isso. Gostava de viver num sítio onde bonecas magras de grandes cabelos loiros viessem com um namorado preto do Bronx ou um totó como o Ken viesse com uma namorada gorda. Mas nunca vêm. A indústria não conhece o poder do Amor.
Hoje sentei-me ao lado de dois adolescentes num bar. Eu só queria beber uma cerveja e não pensar em nada durante alguns minutos, mas acabei a ouvir um casalinho enlatado a gozar com um casalinho não enlatado que nem sequer estava presente. Não tem nada a ver, dizia uma imitação da Barbie cheia de certezas, e ele concordava afirmativamente com a cabeça enquanto completava a tese que explicava porque é que a relação dos outros “não tem nada a ver”. Ela é mais alta do que ele, ele veste-se mal e ela até veste mais ou menos, ela é rural e ele urbano. Tive pena deles mas depois zanguei-me. Mandei-os calar. Eles calaram-se.
Tornei a ter pena deles. Tenho sempre pena do amor processado. Estes putos ainda acham que a base do sucesso para uma relação é ambos serem igualmente bonitos. Nem chega ambos serem bonitos, têm que ser igualmente bonitos. Espero que se casem rapidamente, se chateiem rapidamente e divorciem rapidamente, a ver se aproveitam na vida tudo o que o amor não enlatado tem, e esse tudo é o improviso, é aquilo que não se sabe como vai ser. É que o amor é incompatível com regras e, agora que penso nisso, talvez seja incompatível com este mundo. Não faz mal, mudemos o mundo.

29 comentários:

Unknown disse...

Excelente alegoria! Temos de aprender sempre a viver com o facto de faltar alguma coisa. Ou o sabor seguro do enlatado ou a emocao e desconhecimento de algo improvisado.

Penso que cabe a cada um descobrir onde se sente melhor.

Anónimo disse...

Querido bagaco bom dia
Estava eu aqui a iniciar mais um dia, quando decidi entrar no teu blog.
Tão bom ler te, ate respirei fundo.

Conseguir arrancar da alma cada um dos sentimentos deste post e descreve los da forma como o fizeste é simplesmente fantástico.
Parabems.

Beijo x
P.S.

Tricana disse...

Gostei... :)) Boa semana!!!!

Fatyly disse...

Fabuloso...

Ivar C disse...

jacek, exactamente. :)

anónima, beijinho. :)

tricana, boa semana também. :)

fatyly, :)

Anónimo disse...

Ontem, o marido e seu colega não se conformavam ao ver um namorado tão feio para uma conhecida nossa. O marido diz que o rapaz era tão feio que chegava a ser sem educação (LOL). No entanto, demonstrou ser muito gente boa.

Quando o marido diz essas coisas (procuro não contrariar, porque senão, já viu, né, eheheh), fico pensando, "mas que poxa vida, os feios não têm direito a ser felizes?"

Acho que é bem isso que acontece. O "amor enlatado" até conserva as pessoas, mas com o tempo ele se estraga. Estraga porque tem prazo de validade, seu gosto se perde, sua capacidade de nutrição e ainda pode fazer muito mal.

A sua conclusão foi a melhor. Ao que pareceu ser um "desejar o mal" ao casal, é, na verdade, uma esperança de que eles amadureçam e consigam ser felizes antes que seja tarde demais. Legal isso!

Beijinho

Malena disse...

Tão verdade! O amor , como diz o título do filme, "é um lugar estranho"! E ainda bem! O povo costuma dizer "Se não fossem os gostos, o que seria do amarelo?".
E o amarelo, este Verão, até está na moda! :))

Mari disse...

Assim só se estragaria uma casa :-D
Viver de acordo com a imagem e as convenções sociais é mesmo ser muito quadrado e limitado ou enlatado para usar a metáfora do post!
Viva a diferença e o amor!!

Gasosa disse...

Adorei esta tua dissertação.
E em tom de chalaça acrescento: por isso é que a Barbie se chateou e traiu o Ken com o Action Man...se calhar a Barbie chateou-se do amor enlatado, o Ken é que não. Se calhar o Action Man tem mais condimentos imprevisíveis.

Ivar C disse...

gigi, por acaso... ai está uma coisa que não se deve mesmo dizer sobre os outros: que ele é feio e ela não. Fazer isso é um erro em tantos aspectos, que se me ponho a enumerá-los nunca mais daqui saio. :)

malena, ei, eu concordo contigo e por acaso gosto do amarelo. é A cor. :)

gasosa, até pelo nome, lol. :)

Ivar C disse...

palpitadeira, e as convenções sociais são tão vastas... :)

Anónimo disse...

Deixa lá os casaisinhos enlatados. Eles merecem-se, são ambos estúpidos!

Jacinta disse...

É por isso que esta é a minha parte favorita... e é uma que não haja mais pessoas a pensar assim...

Filipa Reis disse...

adorei...
hoje parece que as pessoas estão mais preocupadas em estar juntas porque ficam "bem" do que porque realmente gostam de o fazer...
:P

Eli disse...

Uau! É mesmo isto! Conseguiste explicar bem melhor do que eu com essa analogia. Gostei.

Já levo esta na bagagem. Obrigada.

:)

EJSantos disse...

Hoje em dia tudo tem que estar formatado segundo os padrões da UE...
As pessoas chegam a ser cansativas com a obsessão pela imagem.

Ivar C disse...

nox lilin, eu deixar até deixo, lol. :)

jacinta, há mais, sim... optimismo. :)

pi, exacto. :)

eli, obrigado eu, por estares aí. :)

ejsantos, segundo os padrões da UE é tudo menos os mercados financeiros, lol. :)

Adelaide Souza disse...

Olá.

Passo por aqui algumas vezes, mas nunca tenho nada a dizer, por isso... bem, não digo.

Mas hoje vim só "informar" que vou roubar (assinalando o respectivo autor, claro) este post para pôr no meu facebook. Acho que merece ser partilhado.

Gosto =) **

Ivar C disse...

adelaide souza, obrigado, então. :)

early bird disse...

uau adorei este texto! e adorei o facto de teres ido buscar a Barbie e o Ken :D

Celeste disse...

o pior é que depois de se divorciarem deitam a culpa na lata e vão à procura de outra de preferencia nova! É preciso muitas latas para aprenderem a apreciar o que está dentro e não o rótulo!

Cassandra disse...

E pá. Adorei :) A minha visão é um bocadinho mais negativistahttp://cassandrasdystopia.blogspot.com/2008/10/perfect-relationships.html mas bem lá no fundo partilho da tua esperança. O verdadeiro amor não é para os acomodados ou, se quiseres, enlatados.

redonda disse...

A última vez que ouvi, o Ken já era, foi trocado por outro boneco.

Gata Preta disse...

Hoje precisava disto. Vou copiar. Desculpa mas vou copiar e citar-te.
Obrigada *

Ivar C disse...

girl in motion, obrigado. :)

celeste, olha que com a idade a lata interessa mesmo cada vez menos. :)

cassandra, definitivamente. :)

redonda, estou chocado, lol. :)

gata preta, obrigado. :)

Provocação 'aka' Menina Ção disse...

Grande, grande, grande, grande pensamento. É tão verdade, a dada altura onde fica o amor?? A sério, muito bom.

Celeste disse...

bagaço para o que gostam de amor enlatado a lata é fundamental o rotulo é que vai deixando de ser importante uma vez que a visão já não é o que era! É preciso ter lata!:)

Ivar C disse...

provocação, obrigado. :)

celeste, lol. :)

Anónimo disse...

Não há amores não enlatados.

Há-os apenas com capacidade de auto-reconhecer o enlatado em si mesmos.