4.17.2009

não ouviu

A torneira da cozinha pinga uma gota por segundo e o microondas, num tímido sinal sonoro, faz saber que já aqueceu o leite do pequeno-almoço. Na banca acumulam-se pacientemente os dias num monte de louça suja e, numa placa gasta pelo tempo, duas torradas enegrecem lentamente.
É como se de manhã já todo o tempo do dia se tivesse expirado. É como se a vida não passasse dum sopro ofegante. É como se a aproximação da morte pudesse ser a acumulação de quilómetros entre um emprego e uma casa hipotecada. Só isso.
Ela está parada à janela numa divisão qualquer da casa. Sabe-lhe bem aquela quietude desistente, ainda que o seja apenas por momentos. Ele já saiu e bateu a porta com mais força que o costume. Agora está lá em baixo, ajeitando o nó da gravata no espelho retrovisor do carro como se se quisesse salvar dum enforcamento normal. Tão normal quanto estranho, o amor entre os dois ter-se tornado no próprio carrasco. Dela, dele e dos dois. Tão estranho que ainda ontem ela lhe disse que se sentia só e ele apenas ajeitou o nó da gravata. Não ouviu.

20 comentários:

Anónimo disse...

Mudanças...

Apenas necessitamos entender que elas existem e são necessárias. Muitos amores se findam por falta desta compreensão, fundamental ao respeito para com o outro.

Enfim. O Amor não é para ser entendido. Mas compreendido e vivido.

Um beijo! :-*

Ivar C disse...

giovana, por falta desta compreensão ou por desgaste natural? :)

calamity disse...

sometimes we have to let go...
that simple.







*

jd disse...

agora olho para ela com saudade nos breves minutos que se mostra à janela na quietude sufocante.
desapertei o nó da gravata e aguardo impaciente num silêncio aterrador que me diga que se sente só. eu também.

me disse...

é verdade....por vezes o não ouvir é apenas a curtina para não kerer ver o k realmente se passa....

bj

maestrina disse...

" É como se a aproximação da morte pudesse ser a acumulação de quilómetros entre um emprego e uma casa hipotecada. "

fantástico, como numa frase conseguiste definir o que às vezes a minha vida me parece... suponho que tenhas conseguido definir a vida de muita gente também... parabéns... e para bem do meu humor, faço bem vir aqui regularmente...

Anónimo disse...

Acredito que uma coisa leva à outra ^^

Aida Lemos disse...

"Na banca acumulam-se pacientemente os dias num monte de louça suja" - imagem interessante e muito inquietante.
AL

lili disse...

Instala-se a rotina. Deixam de se ouvir, depois de terem gasto as palavras até à exaustão, até que estas não tenham já significado algum.

Ainda assim, o silêncio teima em instalar-se como a saída aparentemente mais simples para quem apesar de tudo não é capaz de bater com a porta de vez e dizer um "Adeus" com todas as letras e vai tentando partir aos poucos.
É também muito mais dolorosa para as 2 partes.

Ana Cláudia Alves disse...

permite-me interromper... (que estou de passagem e adorei o que li!) mas creio que uma leva à outra: a falta de compreensão (muitoas vezes motivada pelo orgulho, pela falta de diálogo, ou por coisas tão pequenas como incluir e precaver o outro dessas mudanças) degenera no desgaste...
Beijinhos!
Continua!

Stiletto disse...

É lixado. De repente acordamos e "o que foi já era". Nem nós sabemos quando é que deixámos de nos esforçar. Quando é que a chama foi esmorecendo até apagar.
E quando apaga é dificil como o caraças reacende-la.

Sónia disse...

Saudade...das crónicas da cidade que sopra.

Ivar C disse...

calamity, yes we have. :)

jd, obrigado. :)

caty, :)

maestrina, se puderes vem durante o emprego. :)

giovana, eu também. :)

aida lemos, obrigado. :)

lili, certamente que é a forma mais dolorosa, sim. :)

aalves, eu concordo... e interrompe à vontade. eu gosto. :)

stiletto (prev my space), sim... acho que é por isso que nos devemos sempre dar uma segunda oportunidade com outra pessoa. :)

crystal, obrigado por te lembrares... elas vão voltar. :)

Sophia disse...

Um selinho para ti no meu blog :)

Anónimo disse...

Não devia ser, mas é...a rotina mata o amor e o casamento por acréscimo. O futuro vai passar por relacionamentos diferentes e certamente melhores onde cada um encontra o seu espaço e certamente viverá mesmo em espaços diferentes.
Miau...

João Trolha disse...

Gostei. Foda-se, pá, escreves bem!
Mas tanto pessimismo, para quê? Vive a vida, uma dia de cada vez. E vai fodendo uma garinas para esquecer a crise.
Grande Abraço

jardinsdeLaura disse...

É tão frequente quanto triste!

Ivar C disse...

katynha, vou lá buscá-lo amanhã de manhã... obrigado. :)

miau..., concordo com essa ideia do futuro. :)

joão trolha, não estou pessimista. a sério que não. estou até numa fase boa da mina vida emocional. sou é realista: :)


jardins de laura, exactamente. :)

Sónia disse...

Espero ansiosamente :D

Ivar C disse...

crystal, :)