o sussurro do vento
Gostamos do Amor quando ele não nos atende, como se bater à porta duma casa onde não está ninguém para abrir pudesse ser uma diversão. Não é uma diversão, mas é uma ilusão da qual não se consegue fugir. E a Márcia para mim era essa ilusão.
Encontrava-a por acaso todos os dias ao fim da tarde quando ela vinha da escola, e eu, que para que esse acaso se desse chegava a fazer a mesma rua duma ponta à outra mais de dez vezes, cumprimentava-a sempre com um ar surpreendido. Olá, estás aqui? E ela respondia sempre com um silêncio que fingia acreditar em mim. Depois eu acompanhava-a a casa, porque também por acaso andava sempre a passear só para matar o tempo, nunca lhe confessando que era o tempo que me matava a mim.
Depois ficávamos a conversar à frente da entrada do prédio dela. Às vezes horas, outras vezes minutos, com o tempo assassino que a mim me parecia sempre insuficiente. E, nessa insuficiência, até do vento que lhe acariciava os cabelos e sussurrava aos ouvidos eu tinha ciúmes. Não se podia fazer silêncio, porque o sacana vinha logo segredar-lhe que se despedisse de mim. E ela obedecia. Então até amanhã ou até um dia destes, dizia. Como se não soubesse que no dia seguinte eu tornaria a esquadrinhar a rua para a encontrar por acaso.
Às vezes falávamos do futuro, como se a merda do futuro me interessasse alguma coisa; outras vezes falávamos do passado, como se a merda do passado me interessasse alguma coisa. Nunca falámos do presente, e o presente que eu queria era um que se abrisse e a revelasse a ela, como uma porta onde eu batesse e alguém me dissesse para entrar e ficar.
Uma vez ficámos até mais tarde na conversa. Tanto, que até o Sol se cansou de nos ouvir e se foi afastando em passos curtos. Ela queixou-se que tinha pele de galinha e eu dei-lhe o meu casaco, depois queixou-se que era eu que tinha frio e que não podia aceitar a minha oferta. Abracei-a, um abraço que lhe aqueceria o corpo e a mim a alma, mas ela recuou enrijecendo os músculos e apagando o sorriso. Fez-se silêncio e lá veio o vento segredar-lhe que subisse. Nesse dia fê-lo sem se despedir.
No dia seguinte ela não passou na rua, nem no outros que se seguiram a esse. Encontrei-a apenas mais duas vezes na vida. Uma em que percebi que ela tinha mudado o percurso de propósito para que eu não a encontrasse novamente, o que me fez desistir dela. Outra ontem, mais de vinte e cinco anos depois e noutra cidade que não a nossa. Primeiro trocámos um olhar indefeso e os nossos corpos cruzaram-se num passo decidido. Depois parei e olhei para trás. Ela também tinha parado. Dissemos adeus.
39 comentários:
Amei! O que já não é uma novidade! :)
Obrigada!
Pois é.... a vida tem destas coisas....
O amor é uma "gaita"!
lol ;)
coisasdagaja, obrigado. :)
fátima, e a adolescência ainda mais. :)
Tavita, lol. :)
um adeus é muito mau!
eu gosto de me despedir com um até um dia ou vemos-nos por ai!
mas a vida é feita de opções e escolhas e por vezes devemos ser irracionais ao ponto de tomar iniciativas mesmo que não nos sintamos preparadas para elas.
salsa, bem... de alguém que não se vê há 25 anos, um adeus silencioso até pode ser muito bom. :)
Conheço uma estória parecida, com um reencontro diferente, em que ao fim de alguns dias ele lhe disse "Não te assustes, mas estou apaixonado à 25 anos e não sabia.".
;)
Ohhh...tá tão bonito! Tu és fantástico :-)
Bagaço: não apenas a adolescência....:)
és um romântico :)
Muito bom! :-)
lm, :)
crystal, obrigado pela simpatia. :)
fátima, pois não... era só uma questão estatística e uma contextualização deste texto: :)
carla leite, :)
eliana solange, obrigado. :)
(suspiro profundo e olhar de carneiro mal-morto...) Ainda bem que o pc não regista nem publica a minha cara...
Como sempre profundo e provocador de pensamentos ainda mais profundos nos leitores... Pelo menos falo por mim. :)
Lá que o amor é algo inqualificável e inexplicável é... Mas confessa, mesmo sabendo tudo o que sabes hoje, de certeza que olhas para o passado em que esperavas por ela na rua e sorris, não? :)
Pena do "não abraço". Tola! =D
briseis, :)
besta artista, agora é que sorrio. :)
memyselfandi, ou era tola ou não me gramava. até estou mais inclinado para a segunda hipótese. :)
Conclui-se então que os abraços que nos aquecem a alma, não se esquecem. :)
episódios que nos marcam para sempre e gostei imenso, mas pode acontecer em qualquer idade.
Parabéns!
As tuas histórias, contadas tão dessa tua forma, parecem de encantar. Mesmo que não terminem com um "felizes para sempre", acabo com um sorriso nos lábios, sempre.
É tão bom vir aqui :)
Imagino. Passado tanto tempo... :)
helena, pois não. :)
fatyly, obrigado. :)
blueblood, obrigado. :)
besta artista, :)
Vinte e cinco anos depois, um silêncio cheio de magia entre duas mãos que acenaram.
Palavras para quê?!
Lindo!
Amei!
Adorei a história, obrigada por teres partilhado... é incrível como insólita, a história é mais comum do que possamos pensar...
Há historias assim. Nunca me aconteceu nada do que te aconteceu, mas já me aconteceram coisas que me fizeram sentir como te sentiste.
Faz parte do passado.
lily, :)
rana, obrigado. :)
filipa arez, obrigado. :)
ejsantos, exacto... e são uma aprendizagem. :)
eu adorei ^.^
eu adorei ^.^
eu adorei ^.^
eu adorei ^.^
eu adorei ^.^ é verdade?
eu adorei ^.^ é verdade?
lua azul, lol... isto é que é gostar. lol. :)
lindoooo!
acho que percebi que tens o coração acompanhado. fico contente por ti.
beijo, que já cá não vinha "há séculos"!
teresa, olá! bom regresso. :)
Gostei muito. beijinho
pipoca dos saltos altos, beijinho. obrigado. :)
É a típica ideia adolescente de culminar esperança em todas as mínimas coisas, como se fossem grandes. Como se fosse por mais um beijo ou por mais um abraço que o amor fosse maior. Como se fosse por passar mais vezes à sua frente que essa pessoa repararia em nós a ponto de nos querer eternamente. De fazer histórias enormes a partir de migalhas.
cármen, :)
Enviar um comentário