a prova dos nove
1) Às vezes gosto de olhar para a minha imagem no espelho, outras vezes não. Desta vez estou a gostar de me ver no espelho da minha casa de banho. Coloco as mãos em forma de concha e encho-as com água da torneira para lavar a cara. Paro uns segundos. É um gesto que se repete desde criança.
2) Uma criança anda a pedir nas ruas de Espinho. Estende-me as mãos enquanto me obstrui o passo. O gesto dela é igual ao meu só que eu nunca o fiz para pedir. Ofereço-lhe o lanche.
3) Dois bolos e uma coca-cola. A criança é romena. Come dois bolos e bebe uma cola enquanto eu tomo café. Do outro lado do balcão uma mulher olha-me impaciente. Não quer que eu esteja ali por causa da criança que, tinha sido expulsa de certeza se não estivesse comigo. Sinto uma agradável e estranha sensação de poder.
4) Às vezes gosto de olhar para a minha imagem no espelho, outras vezes não. Desta vez não estou a gostar de me ver na porta envidraçada do armário frigorífico que mantém as bebidas de lata frescas. A miúda gasta seis guardanapos para limpar as mãos e depois vai à casa de banho.
5) Obrigado. Ela diz obrigado antes de se afastar e eu fico a vê-la correr entre os carros estacionados num parque automóvel improvisado. Gosto da sensação de a ver correr. Acho que é por isso que depois, quando atravesso a rua na direcção oposta, só piso as linhas brancas da passadeira. É uma brincadeira de criança que ainda faço com a minha filha.
6) Os meus olhos cruzam-se com os de uma mulher no passeio. Adivinho que ela reparou em mim quando pisei nas linhas brancas. É bonita. Aliás, é mais do que bonita. Mulheres bonitas há muitas, mas com este je ne sais quoi que me faz ter uma vontade imediata de a abraçar não há assim tantas. Sorri. Também é simpática.
7) Gosto sempre mais do comboio no regresso a casa do que no trajecto para o emprego. Os passageiros estão mais cansados e silenciosos. Nem sequer percebem que acabaram de viver mais um dia. Penso nisso, em viver mais um dia, e sinto-me feliz por sentir que, apesar de tudo, tenho aproveitado os dias. Às vezes gosto de olhar para a minha imagem no espelho, outras vezes não. Desta vez estou a gostar de me ver ver no reflexo da janela do comboio.
8) Pico uma cebola, corto um dente de alho, um pimento e um tomate. Lembro-me da criança romena porque estou com comida entre as mãos. Refogo tudo num wok e depois junto umas lulas limpas. Tempero. Lembro-me da mulher bonita por causa do tempero. Era mesmo bonita. Junto couscous e espero dez minutos com o fogão desligado. Às vezes gosto de olhar para a minha imagem no espelho, outras vezes não. Desta vez não estou a gostar de me ver no reflexo da janela da cozinha. Devia ter, no mínimo, sorrido também àquela mulher.
9) Coloco as mãos em forma de concha e encho-as com água da torneira para lavar a cara. Paro uns segundos. É um gesto que se repete desde criança. Lavar os dentes antes de me deitar também. Lembro-me da criança romena porque estou a lavar os dentes. Às vezes gosto de olhar para a minha imagem no espelho, outras vezes não. Agora olho e não sei se estou ou não a gostar. Sei que tenho alguns cabelos brancos e preciso de fazer a barba. É tudo.
32 comentários:
Bagaço, nem imaginas o prazer que me dá começar o dia assim. Muitas interrogações neste texto, que farei hoje aos meus amigos (mas respeitarei os direitos de autor, não me quero fazer de inteligente;)). Sem querer, terás influenciado o quotidiano a pessoas do outro lado do mundo. Efeito borboleta?
Bom dia,
Isto serve e se calhar nem é preciso...
Eu todos os dias venho ler e inspirar-me, logo eu que sou um esquesito, mas até escreves umas merdunfas, portanto...obrigado
Enquanto estava a ler o teu texto, ouvia na minha cabeça uma musica que esteve na bera há uns anos atrás de um grupo chamado enigma. "Return to Innocense". O Reencontro com a inocência de criança que ainda habita em ti. :P
Fantástico!
(há muito que leio o teu blog)
Adorei toda a descrição :)
Gostei!!
Just a thougth: mudar a etiqueta de ser divorciado para ser... :)
Adorei.
Deixou-me a pensar (ainda mais) na vida que tenho...
Beijo
que belo texto:)
delicioso- o texto e as imagens. parece que estamos dentro de uma curta :)
Sabes que mais? Até escreves bem...
E sabes outra coisa? Eu também não entendo os homens...
Anabela
Gosto tanto de ti e do que tu escreves...
:)
:)
Beijinhos
Rita
pedro, estás do outro lado do mundo? gosto da ideia... bem... que isto sirva para alguma coisa. abraço. :)
abílio, gosto da palavra merdunfas. :)
heidy, ena, eu lembro-me disso. :)
mushi, obrigado e um abraço. :)
lostinthoughts, concordo que a minha organização das etiquetas é um bocado desorganizada, lol. :)
subtilezas, obrigado. :)
pimpinela, ainda bem que gostaste. :) obrigado, a sério...
anabela, eu também não... mas aos homens não ligo tanto. :)
bri, é recíproco. :) beijinho
rita, beijinhos muitos.:)
Boas,
fui apresentado ao seu blog há relativamente pouco tempo. Mas devo dizer-lhe que fiquei fã. Excelente escrita, mas este em especial deixou-me vidrado.
Continue ;)
Sim senhor...Cada vez gosto mais deste blog. Ora parto-me a rir, ora parto-me a pensar. Gostei desta prova.:)
bolos, obrigado... e bem vindo. :)
sandra, é uma alteração de humores que também tenho... obrigado. :)
Excelente texto!!!!!
Gostei imenso :D
Beijo grande
s
Oh pá estes textos "partem-me" toda! Muito bom! ;)
sandrine obrigado... beijo :)
selita, a mim partem-me quando os faço. é justo. :) obrigado. :)
Meu querido bagaço amarelo...
Fazes-me rir, sorrir e pensar...
Tenho pena é de não ter jantado contigo. A descrição que fizeste...fez-me água na boca.
Muito bom.
Voltarei mais vezes.
Um grande beijo
Ana
Para mim hoje é daqueles dias em que não me apetece olhar ao espelho...de certeza que não gostaria do que iria ver...
Anabela
tens um bom coração... e isso reflecte-se, não necessariamente na imagem q vês no espelho, mas nos teus actos ;)
beijinho
Parece que já está tudo dito. Também eu te vou dizer que gostei muito deste post.
(só não gostei de ver a descida do índice ivariano...)
Fica bem :)
Olá "Bagaço"!
Às vezes ando pela net "tipo robot" a ver as trivialidades do costume (a queimar tempo) e a dizer banalidades no messenger. Hoje, felizmente, vim ao teu blogue e deparo-me com este texto. É como um estalo! E fico a pensar na vida... Obrigado!
João (das sms para Castro Laboreiro)
No fundo o reflexo que observamos é a nossa consciência a reflectir sobre nós e o mundo. Por isso às vezes não gostamos do que vemos em nós e à nossa volta.
Colocamo-nos no lugar do outro e tentamos por momentos minimizar a sua dor, a sua condição. E lá vamos, nos entretantos, levando a vida e tentando ser felizes, mesmo sabendo da infelicidade dos outros.
Obrigada por este momento de introspecção.
Dori
É bom saber que nem toda a gente fica indiferente. :) Cá em Lisboa há tanta gente a pedir... As pessoas acabam por ficar saturadas disso e quase que os enxotam a pontapé. Mas geralmente os pedintes são adultos e toxicodependentes.
Estou a ver essa conversa com o espelho, também já tenho tido algumas dessas :)
~CC~
http://a-banda-sonora-da-minha-vida.blogspot.com/2008/10/s-vezes.html
[ ]'s
Ana, neste dia jantei mesmo sozinho... :) beijo
Anabela, isso não quer dizer que outra pessoa não gostasse. :)
bia, :)
olga, essa descida não é um drama. :)
joão, ena... és tu. grande abraço e obrigado pelo serviço de bússola nessa noite. :)
Dori, obrigado pelo mesmo. :)
[e]vil, eu também não costumo ligar muito a pedintes, para ser sincero. não gosto sequer da lógica da caridade... mas com crianças é diferente. :)
ccf,acho que temos todos, não é? :)
sobrevivente, :)
Há dias assim...
Há dias em que se acorda, olhamos a nossa imagem no espelho e sorrimos pelo dia que já comecou...
Há dias em que se acorda, olhamos o espelho e amaldicioamos o dia que ainda não começou...
Há dias que enquanto passo a ponte, a caminho de mais um dia encho o peito de energia, sorrio para o dia e sinto-me feliz por ser quem sou, afortunada pelos amigos que partilham a vida comigo e pela sorte de ter nascido onde nasci...
Há dias que enquanto passo a ponte, isso não acontece, sinto apenas a tristeza de mais um dia...
Há dias que fico feliz com um olhar e um sorriso desconhecido...
Há dias que fico triste com um olhar cheio de desconhecida tristeza...
Há dias que quando chego a casa, abro a janela, sinto a brisa do rio e encho-me de profunda calma nocturna...
Há dias que quando chego a casa, abro a janela, olho o ultimo reflexo de luz no rio, sinto a primeira brisa da noite e as lagrimas correm pela minha face por cada dia que passou, igual a outros que não voltam mais e a outros que ainda virão...
Há dias assim...
Sónia
Sónia, :)
Dá gosto ler-te.
*
inês, obrigado,, e dá gosto saber isso.:)
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