9.17.2008

o mundo sempre foi assim

Acho que o mundo sempre foi assim: um homem a escrever linhas sem sentido no cadáver dum guardanapo e uma mulher bonita do outro lado do balcão. Se não foi sempre assim, é-o pelo menos desde que entrei neste bar. Na verdade ela é tão bonita que o resto da História não me interessa nada. Portanto foi sempre assim.
Peço um terceiro copo de uísque. Nos dois que já bebi, e cujos copos vazios acabaram de adormecer, fundem-se com o resto das pedras de gelo os meus últimos pensamentos sóbrios. Não me lembro quais foram. Não faz mal, se o mundo sempre foi assim ela vai compreender os meus gesto incertos e a voz arrastada. E compreende. Compreende tanto que desta vez enche o copo mais do que o normal. Praticamente é um uísque duplo. Depois fecha a garrafa e afasta-se, encostando-se no outro extremo do balcão.
O guardanapo está de facto morto, e se a minha Bic azul ainda o tentava trazer à vida numa sôfrega respiração boca a boca, acabou agora de o matar com um rasgão enquanto escrevia mais uma palavra. Já bebi tanto que não me lembro sequer qual era palavra. Mais um gole e guardo tudo no bolso. A caneta e o defunto.
Ela caminha na minha direcção e, sem sequer pedir, bebe o que resta do meu uísque duma só vez. Depois fecha a porta e as janelas do estabelecimento, volta para o balcão e serve mais dois copos, desta vez sem gelo, cheios. Senta-se mesmo ao meu lado. Acho que, se ainda há pouco as palavras ardiam na minha boca como um incêndio, o uísque apagou-as.
A minha língua e a dela estão banhadas em silêncio e mergulham uma na outra. Tentam enrolar-se mas não conseguem. É bom estar nesta fase alcoolizada, em que os movimentos perderam os receios mas o corpo ainda se excita. Ela vai para cima do balcão como se já estivesse habituada a fazê-lo. Talvez o faça todas as noites com o último cliente. Com os dedos da mão direita afasto dos seus olhos alguns dos cabelos loiros e, enquanto lhe beijo a testa, masturbo-a na vagina com a mão esquerda. Tento encontrar-lhe o ponto com o dedo do meio. Demoro um bocado mas já está. É o primeiro suspiro que ouço, e tento inspirá-lo como se fosse um vento brando. Os meu lábios vão-lhe percorrendo o corpo, ainda a tentar despir-se mas já sem calças, e a língua chega ao ponto que os dedos encontraram antes. É o segundo suspiro, que agora inspiro como uma tempestade. Faz-me um minete, pede ela. E eu faço. Os suspiros transformam-se num furação e eu continuo. Quero sentir-lhe o sabor. Há mulheres tão doces...
E esta sabe a qualquer coisa. É a uísque. Acabo mais um gole. Ela continua no outro extremo do balcão e olha para mim com um ar cansado. Está só à espera que eu pague. Pouso o copo. Não sei quanto tempo estive a imaginá-la nua, comigo e a suspirar tempestades, mas sei que deu para beber tudo. Não sei que gestos fiz nem o que ela pensou. Sei só que foi o melhor gole de uísque da minha vida.
Cá fora a Lua olha-me curiosa pelo que eu vou fazer a seguir, mas eu decepciono-a. Sento-me num banco de jardim protegido pela luz dum triste candeeiro público. Depois deito-me nele. Acho que o mundo sempre foi assim. As mulheres como uma memória recente mas nunca presente. Se não foi sempre assim, é-o pelo menos desde que estou neste banco. Vou adormecer.

12 comentários:

SP disse...

Ui... Com uma imaginação dessas...;) O texto está muito bom:)

Olha que só de lêr... Dá uns certos calores;) (será do uísque?)

Anónimo disse...

Tornaste o meu dia melhor, é sempre um prazer ler coisas assim. Devia parar de beber cerveja sozinho em casa, não emociona tanto ;)

Olga disse...

Este também cabia na etiqueta do "gajo que é artista". :)

Ivar C disse...

deusaminervae, lol. como dizia o Vinicius, "o Whisky é o melhor amigo do homem, whisky é o cachorro engarrafado". :)

pedro, em casa eu é mais uma garrafa de Cabriz, lentamente enquanto leio ou ouço música. :)

olga, lol... um artista deprimido, praí... lol lol. :) obrigado. :)

Carla disse...

o melhor do teu texto é que nos faz cmpanheiros da tua viagem...ou melhor do teu sentir!

Ivar C disse...

carla, :)

selita disse...

Este texto está uma delícia, hehe :)

Ivar C disse...

selita, :)

IMP disse...

Um brilhante conto erotico :) Admiro te a falta de pretensiosismo quando mencionas "Talvez o faça todas as noites com o último cliente."Afinal de contas a imaginacao e' tua e podias ser um cliente especial. Ou talvez, esse factor apimente mais a situacao :)

Ivar C disse...

imp, não deixei, na minha imaginação, de ser um cliente especial. não acho que para ser especial tenha que ser o único. :)

MYA disse...

fabuloso

Ivar C disse...

mya, obrigado. :)