a vida segue dentro de momentos
A vida segue dentro de momentos. Ainda bem, pensa ele enquanto tenta apagar luz com a ponta do dedo sem que o interruptor faça o seco ruído do costume. Não consegue. Click! A vida segue dentro de momentos.
Já tinha perguntado a si mesmo quando seria a primeira vez depois da última, porque depois da última pode ser uma vez qualquer: a segunda, a terceira, a quarta, a centésima ou a primeira de novo. Apercebeu-se que seria a primeira de novo quando ela fechou a porta com força e não voltou como era, aliás, habitual. Discutiam, ela saía amuada e depois voltava. Menos desta vez, que a porta se manteve fechada cigarro atrás de cigarro, uísque atrás de uísque, minuto atrás de minuto. Ou à frente, já nem sabe bem.
O pior de quando uma mulher se vai embora é que leve o seu corpo com ela. Se fosse possível era bom chegar a um acordo do tipo "vais-te embora de vez mas o corpo só vai embora aos poucos". Vai-se embora uma hora hoje, duas amanhã, quatro depois e assim por diante. É que um corpo de mulher vai enganando bem a alma, enquanto a alma nunca consegue enganar um corpo.
E ela foi-se. Ela e as pernas dela, ela e as mãos dela, ela e os seios dela, ela e a vagina dela, ela o pescoço dela, ela e a voz dela, ela a pele dela, ela e o corpo dela. Todo. Ficou só a vida, aquela em que se respira involuntariamente sem se perceber porquê, aquela em que os outros passam por nós sem nunca passarmos por eles. E ele a fumar, a beber e a viver essa vida. Só isso. Até hoje.
Hoje, num autocarro sobrepovoado de pessoas sós, sentiu o pénis endurecer ao mesmo tempo que o coração amolecia. Normalmente é assim e o contrário também acontece: quando o coração endurece, o pénis amolece. Ela também o sentiu, a beijar-lhe a saia numa travagem brusca na última paragem. Saíram os dois e perguntou-lhe as horas mesmo tendo um relógio no pulso. Eram sete da tarde. Jantaram juntos, caminharam em direcção a lugar nenhum, deram as mãos e os lábios como quem dá o que não tem para dar. Agora são onze da noite e ela está na sala dele, sentada no sofá de copo de uísque na mão e algum brilho, pouco, no olhar. Click! A vida segue dentro de momentos.
17 comentários:
Fantástico!
anónimo, obrigado. :)
Está bem vista a parte do levar o corpo aos poucos...
E é bem verdade que "um corpo de mulher vai enganando bem a alma, enquanto a alma nunca consegue enganar um corpo."
Adorei o texto. :-)
joão F, obrigado. :)
Parece fácil amigo, pelas tuas palavras, parece mesmo que é uma questão de "click" xD
cota, a facilidade é tão relativa... :)
Classificas este teu belissimo post como "crónica de engate" com um título sensacional, porque de facto a vida é feita de engate (prejurativo) e engates (naturais) à distância de um clik, com consequências agradáveis e por vezes tão desagradáveis.
A metáfora(?) que usas sobre o "corpo " está sensacional e não será essa a dura realidade do enorme sofrimento/ausência para quem fica...que só aos poucos é que vai despegando do que tanto lhe fez feliz? Não sei se me fiz compreender.
Gostei muito!
fatyly, obrigado. :)
quando alguém se vai embora da nossa vida ( se é que vai?!) só se sente falta do corpo?!
O corpo será apenas uma manifestação fisica do que a pessoa é. e então o resto? não há nada mais além do corpo que se sente falta, qd ela vai embora ?
e que serve ficar com um corpo, se a alma se foi embora...
a ausência fisica, sente-se numa primeira fase,
claro que depois da dor, vem o crescimento, a sabedoria, e a vida segue em todo o explendor!!
Está fantástico!
anónimo, é precisamente disso que eu queria falar. não, não sente falta só do corpo, mas que o corpo ajuda a enganar, lá isso ajuda. :)
lúcia, obrigado. :)
não penso que o corpo ajuda a enganar...é que através do corpo do outro sentes-lhe a alma, mas para isso, tens que te abstrair da posse fisica, tens que ir além das mãos, da pele, do sexo, tens que lhe ver a Alma.
mesmo que o estejas a possuir nesse momento.
anónimo, :)
Realmente, fantástico.
ana, obrigado. :)
Oxalá a vida siga sempre... e da melhor forma! =)
memyselfandi, obrigado. :)
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