10.13.2008

talvez sim

1] São três da manhã. Estaciono o carro em frente a casa e desligo o motor. Ouço o silêncio da rua. No espelho retrovisor vejo a luz de um dos candeeiros públicos que tremula como se estivesse doente. Apesar de doente, é o único sinal de vida que me rodeia.

2] Procuro as chaves de casa nas calças sem meter as mãos nos bolsos. Por fora, apenas. Se o único sinal de vida que me rodeia está doente, talvez eu não devesse subir já. Não gosto de me ver no espelho do elevador nestas noites de ausência. Quando vivemos sozinhos reparamos mais vezes que a nossa noite está doente, penso.

3] No bolso onde estão as chaves também está o telemóvel. Tiro-o enquanto estiro o banco do automóvel e me deito. Abro a caixa das mensagens. Leio as dela, uma por uma antes de as apagar. Foi sempre um "talvez sim". Até um não. O processo é o mesmo: são mensagens onde já houve vida. Agora não há.

4] A noite acorda. Um carro estaciona mesmo atrás de mim. Sei quem é a condutora. É uma prostituta que vive no prédio ao lado do meu, de quem a maior parte dos meus vizinhos já me fez queixa. Ela é bonita e sempre simpatizei com ela. Apresso-me a sair do carro.

5] Boa noite, digo-lhe. Boa noite, responde ela. Consigo subir o elevador com um sorriso. Pelo menos é o que o espelho me diz. Espero que ela esteja a sorrir também, no espelho do elevador dela. Talvez sim.

17 comentários:

Liana disse...

Talvez meu querido...

Ivar C disse...

liana, :)

Anónimo disse...

Talvez, só talvez, eu AME a maneira como vc usa as palavras...

Adoro os seus textos!!!


Beijos

Carla disse...

quando se vivem noites doentes...o sorriso é o melhor medicamento

Anónimo disse...

Bem que podias ter saído do carro uns minutos depois...

redonda disse...

Um texto muito bonito. Gostei.

Ivar C disse...

liliane, obrigado... pela presença e pela simpatia. :)

carla, é sim. :)

A prostituta do prédio ao lado, lol lol lol lol... prometo continuar a chatear. )

redonda, obrigado. :)

Pax disse...

No fundo, acaba sempre por haver algo que nos anima, que nos trás um sorriso.
Nem que seja um pensamento...

:)

Sandrine disse...

Gostei imenso deste "talvez sim"... ainda não percebi porquê... mas na maioria das vezes basta gostar sem se ter que escavar as razões :)

Ivar C disse...

pax, exactamente... :)

sandrine, se nem eu percebo bem porque o escrevi... :)

Anónimo disse...

Bagaço amarelo...
Mais um texto bonito.
[Não estou surpreendida.]
A luz da noite talvez não seja doente (não é uma correcção... é uma opinião), talvez seja só frágil. Mas há uma força no frágil inexplicável.
...

Seguramente que ela também sorriu no elevador. Seguramente.

Um grande beijo
Ana

IMP disse...

Fizeste me lembrar duas coisas k nem sabia que tinha arquivado na memoria (1)a descricao da luz tremula e doentia fez me lembrar a luz de presenca k os meus pais me deixavam durante a noite qd eu era pequena e tava doente :)(2)qd vivia em aveiro, no mm predio onde eu morava, habitava uma senhora a quem os aveirenses nativos chamavam a prostituta dos cinquenta contos :)

Esta me a cheirar a naftalina...:D

Brigadao plo post :)

Anónimo disse...

Essa coisa do espelho é doentia. Eu subia de escadas. :p

Ivar C disse...

Ana, obrigado por andares por aqui. :)

imp, vinte contos... viveste, portanto, no Bairro do Liceu. Abraço. :)

[e]vil, lol... às vezes subo... :)

Gato Aurélio disse...

As coisas limitam-se a ser o que são
quando as olhamos de frente, como esse cão
que enfrentou o céu e não teve resposta.

Outras coisas são mais simples do que
pensamos, quando as definimos entre o
que são e o que não sabemos delas.

O cão perdido no areal pode ser uma dessas
coisas, quando transforma as ondas na
sua matilha, e elas vão atrás dele.

Como se as ondas fossem animais,
e o mar respirasse pelas suas bocas
quando perseguem o cão que as espera.

Nuno Júdice

;O)

IMP disse...

that's right ;) abraco :)

Ivar C disse...

gato aurélio, obrigado. :)

imp, :)