respostas a perguntas inexistentes (226)
o gato na cabeça do miúdo lunático
- São dez euros! - diz.
Eu pago e sento-me. Sinto-me qualquer coisa muito parecida com um código de barras. Aquela mulher pediu-me informação pessoal sem querer conhecer a minha cara, o espelho do que eu sinto. Não lhe interessa. Sou apenas um cliente. Mais um cliente.
A sala é apertada. Treze cadeiras, das quais apenas três estão vazias, e um tapete vermelho ao centro. Uma mulher choraminga numa delas, quase à minha frente. Não percebo se é de dor ou de medo da doença. Olho-a nos olhos e ela sorri-me timidamente, sem vergonha. Devolvo o sorriso tentando parecer compreensivo.
A recepcionista levanta-se e vem ter comigo. Diz-me que a minha receita tem um desenho na parte de trás e que vai ter que dizer ao doutor, pois não sabe se é válida ou não. Explico-lhe que foi sem querer, que a misturei entre um monte de papéis de rascunho e acabei por desenhar um gato na cabeça de um miúdo lunático. Ela não se ri, não reage emocionalmente. A face dela continua igual, como se de uma escultura em pedra se tratasse. Tenho pena dela.
- Tenho que ir perguntar ao doutor! - E vai.
Gosta de mim, por favor! É o que eu penso, sem pensar muito bem a quem dirijo o pensamento. À Raquel, à minha filha, aos meus irmãos, ao meu pai ou à minha mãe. Aos meu amigos, talvez. Sei lá. E se eu tiver um problema no estômago? Daqui a uns vinte minutos talvez veja a vida a fugir-me, sem sequer me olhar olhos nos olhos. Talvez. Gosta de mim, por favor!
- O desenho é bonito! É o quê? - diz-me um homem que está mesmo ao meu lado.
- É um gato na cabeça dum miúdo lunático. - ele ri-se.
A mulher que choramingava aumentou de intensidade. Agora chora bastante. Tem as duas mãos no rosto e está dobrada sobre ela mesma, encolhida perante o mundo, perante o futuro, perante tudo. Apetece-me ir lá abraçá-la, mas não estou capaz.
- O doutor pode atendê-lo! - ouço.
- Talvez tenha gostado do meu desenho! - penso.
O corredor para o consultório é curto, mas as minhas pernas não querem lá chegar. Por fim abro porta e o médico sorri. Por trás dele estão algumas plantas altas que enchem de vida aquele lugar. Os médicos são o correio da vida e da morte. Fixo-o bem, a tentar perceber que tipo de médico é este.
- Deite-se na maca! - diz ele por fim.
As lágrimas vêm-me aos olhos, embora eu não esteja realmente a chorar. É uma reacção física ao incómodo do tubo que me vai entrando pela garganta. Estou em sofrimento físico e penso na mulher que chora lá fora, na sala de espera, com um sofrimento que eu não cheguei a descortinar. Faço a endoscopia e, por conselho do médico após a nossa conversa, uma biopsia.
- Não tem nada no estômago, a não ser uma bactéria que convém erradicar! - entrega-me um envelope para o meu médico de família.
Saio e ouço-o a dizer a palavra "próximo". Mais tarde ou mais cedo, todos somos o próximo em alguma coisa. Lembro-me do gato na cabeça do miúdo lunático. Rio-me. Estou cá fora na rua e sinto o doce vento a acariciar-me a face.
28 comentários:
:) Mais uma vez, viajei com as palavras....
flow, obrigado pela presença. :)
Não é tao triste estarmos a perder o humanismo que nos devia rodear e apenas nos alheia?
Mais um excelente texto, BA! Fiquei cheia de vontade de ver o gato na cabeça do miúdo lunático. Pensando melhor, já o estou a ver e estou a sorrir ao mesmo tempo :)
eva maria, é... é mesmo. :)
Mam'Zelle Moustache, eu devia era ser mais organizado e não misturar papelada. :)
Helicobacter pylori?! Essa sacana também habita nas minhas entranhas... passa a ser crónica... a bicha!!!
Continuo a passar por aqui quase todos os dias... bonita a ideia do adormecer.pt... que tenhas muito sucesso!!!
Que frieza... :\ não percebo o que é que as pessoas ganham em ser antipáticas com os outros...
"A face dela continua igual, como se de uma escultura em pedra se tratasse. Tenho pena dela."
Como te compreendo.
Já trabalhei em atendimento ao público. Alguma simpatia e bondade no tratamento não custa nada. E às vezes faz milagres.
Ah, as melhoras.
Proximo (!?) Não! Até à próxima.
;-)
EJSantos
blue eyes, essa mesmo. vou eliminá-la. obrigado pela presença. :)
estudante a questão é que não ganham nada. :)
ejsantos, de facto, um esforço por sorrir ao próximo não custa nada. até à próxima. um abraço. :)
Adorei o texto!
Porque será que há tanta gente assim? Completamente alheia aos outros?
mammy, obrigado. há uma razão, ou várias, e ao mesmo tempo é essa forma de estar uma causa. acho eu. obrigado. :)
se há coisa que detesto é que falem comigo e que não me olhem, é um desprezo, falta de consideração, que frieza! Até eu me ri com o gato na cabeça do miúdo lunático.
Simplesmente só contigo..
aNaMartins, É um virar de costas ao mundo, antes de mais. :)
Uau! Pronto, a tua escrita é fantástica!
P.S. Eu vinha aqui dizer que tens um prémio/troféu lá no meu blogue, caso queiras passar... :)
Sabes essa recepcionista percebo-a bem, haverá vários motivos, um deles a extrema frustação do seu dia a dia, entre outros possiveis e sim tenho pena dela, muita pena, porque é no contacto entre uns e outros que a vida acontece.
As melhoras :) e se quiseres espreitar ZD Vitaliza, onde a saúde impera, porque a alimentação é tudo.
A frieza e ou a falta de sensibilidade de quem nos atende cada vez é mais assustadora e temos que ser nós a dar-lhes a volta.
Todos temos essa bactéria Helicobacter pylori e a ciência continua empenhada em saber porque é que ela deixa o seu estado natural/primário e começa a criar problemas.
Vais ficar bem e ela irá ficar sossegada.
Força rapaz...e como diz o velho ditado: quem tem cú tem medo lolll
Beijos
Kafka teria gostado,
cumprimentos,
JD,
P.S.: Atribuí-lhe a simbologia de um prémio lá no meu pequeno canto.
Como é que é possível saber se tens uma bactéria no mesmo dia? eu fiz uma endoscopia e biopsia no dia 19 e ainda não sei nada.
eli, obrigado. quero. hoje ando numa corrida. só poderei ir logo. :)
carmo, vou ver isso. obrigado. :)
fatyly, o médico disse-me que só alguns têm e que é genético. beijinho. :)
james dillon, obrigado. :)
bri, eu soube em cinco minutos. o médico fez tudo à minha frente com um kit bastante simples... :)
Vai à wikipédia e lê e tens aqui este link para te tirar as minhocas da cabeça
http://www.mdsaude.com/2009/01/como-e-quando-tratar-o-hpylori.html
Mais de 50% da população mundial é portadora dessa bactéria...mas "só alguns é que têm a dita em actividade o que eu chamo de dentes" daí as gastrites etc. e raramente, mas raramente cancro, há tratamento para a gaja ficar quieta lolll
Ainda a ciência neste campo era uma criança e criança era eu quando fizeram-me testes (ainda não era pratica a endoscopia) e tenho-a pois claro...e já se passaram 50 anos e ela vive comigo e está sossegada. Pode ser genético sim...mas na minha família só eu é que tenho...mas não fui às gerações os tetravós loll
Houve imensos factores na minha vida que a podiam pôr em ebulição como o ter vivido uma guerra, comer quase zero e quando havia marchava tudo, o ter perdido tudo desde o emprego ao simples lençol da cama...por duas vezes, preocupações, divórcio, morte de familiares,40 anos de trabalho que me deram água pela barba, ansiedade sempre em cima (hoje controlada) e cá estou nos quase 62 anos.
e olha que não é para dar "graxa ao cágado" (animar-te) mas por gostar de partilhar do que sei por muitooooooo ouvir e fico-me por aqui:)já que só o facto de termos de ir ao médico ficamos doentes, quando falam em biopsias começamos a entrar em coma...e os médicos são quase todos "telegráficos",
mas comigo não...espremo-os e quero respostas e não faço sem me dizerem e não saio sem me explicarem e mais nada:):):):)
Beijocas e desculpa tá:)
fatyly, obrigado por me deixares mais descansado. a sério. :)
Eu gosto de si. E não precisa pedir, muito menos por favor.
este post demontra um grande talento para a escrita e sensibilidade, gostei muito bagaço
anónimo, obrigado. :)
o olhar do lobo, obrigado. :)
Mais um óptimo texto!
a vida da cinderela de saltos altos, obrigado. :)
Se fosse fácil erradicar do mundo pessoas antipáticas, quanto é relativamente fácil erradicar bactérias do estômago, com certeza seriamos todos muito mais felizes! Não achas? :)
storm, acho sim... mas talvez a antipatia seja uma bola de neve. seria melhor tornar essas pessoas simpáticas. :)
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