2.27.2011

respostas a perguntas inexistentes (132)

a estátua de algodão

Quando ela se deita, tudo o que nela é brusco e violento adormece muito antes do seu corpo. É por isso que depois do jantar ele conta os minutos um a um, à espera do momento em que lhe pode perguntar como correu o dia, uma pergunta trivial que deixou de o ser há algum tempo, não se lembra bem quando. Ela responde sempre abanando os ombros como se quisesse enxotar a pergunta. Às vezes fazem amor, embora raramente, e quando o fazem acabam abraçados até adormecerem os dois. Nessas noites não há trivialidades.
Normalmente é ele quem adormece primeiro, e ela petrifica o corpo como uma estátua de algodão para não o acordar. Petrifica o corpo, não a mente, que fica a responder a si mesma à pergunta que nessa noite ele não fez porque fizeram Amor. A merda do dia nunca correu bem, e é só nessas alturas que ela gostava de lhe poder dizer isso, que a violência latente que nela habita não é por ele, é pela merda do dia. Pena ele estar a dormir.
Ele não sabe que nela, as palavras que lhe vão ficando prisioneiras nos lábios sempre que abana ombros também a vão aprisionado nelas. É uma ansiedade crescente que a impede de dormir depois do sexo.
Ela não sabe que nele, esses raros actos de Amor e sexo são sempre o sinal de que o dia seguinte será melhor, e que é essa aparente acalmia, aninhada numa estátua de algodão, que o põe apressadamente a sonhar.

22 comentários:

HydraFlama disse...

Acho que durmo com essa mulher, mas cá em casa ela adormece primeiro que eu!

Celeste disse...

dormimos todos uns com os outros ;)

Ivar C disse...

hydraflama, lol. :)

celeste, :)

Helena disse...

Por isso o melhor é viver um dia de cada vez...é preferível assim!

Fatyly disse...

É dos sinais que mais me preocupa no ser humano, é "o encolher de ombros" perante "uma pergunta trivial" que não concordo que seja "como se quisessem enxotar a pergunta" e é extremamente doloroso porque neste caso para ela o "fazer amor" já há muito que é uma trivialidade e numa de ok correspondo para me fechar mais no meu casulo!

Pode ter sido "um dia de merda" a juntar a tantos outros que mais dia menos dia também o deixará acordado e aí aprenderão que o insistir num diálogo por vezes um pouco aceso (atenção: não agressivo) será sempre bom...isto se gostarem mesmo um do outro e não estarem por estar!

Retratas aqui...algo imensamente grave e seria tão bom que todos pudessem sonhar...e fico-me por aqui!

Eli disse...

E dizes tu que não compreendes as mulheres?! Fraude!

lol

:))

Ivar C disse...

maria, viver um dia de cada vez, nessa perspectiva, é também uma espécie de desistência. ou não ? :)

fatyly, tens uma interpretação um bocadinho diferente da minha, o que é óptimo. :)

eli, lol... não imaginas o longe que me sinto de compreender... :)

Anónimo disse...

muito obrigada... foi um dos textos mais bonitos que li.

Ivar C disse...

anónimo, eu é que agradeço. a presença e a quebra do silêncio. :)

Cristina disse...

Lindo! Simplesmente lindo!

Ivar C disse...

cristina, obrigado. :)

Helena disse...

Faço minhas as palavras da Eli: "Ainda dizes que não compreendes as mulheres"...chiça!:)

Briseis disse...

E quando achávamos que já não havia mais nenhum assunto que faltasse dissecar aqui pelo Bagaco, ele, PIMBA! Cai-nos em cima com uma estátua de algodão...
Que lindo...!

Celina Rodrigues disse...

Algodão é algodão, branquinho e fofo, pelo que não consigo imaginar algodão petrificado, está muito além das minhas capacidades.
CR

PS: será que se eu colocar um pau de algodão doce no congelador consigo ter esse efeito?

Ivar C disse...

maria, lol... digo-o plenamente convencido do que estou a dizer. :)

briseis, isto nunca acaba. :)

celina rodrigues, não, não consegues. consegues com uma boa almofada. :)

Rana disse...

Que nome tão fofinho para uma estátua. Mas, apesar de ser fofinho não deixa de ser uma estátua. Pena é que naqueles momentos, principalmente ” naqueles”, a estátua não se transforme em algo com mais vida.
Bom texto

Ivar C disse...

pois Rana, é mesmo isso. :)

Jeevika Dasi/CL disse...

Lindoooo...agarrou-me ao ecrã este texto...

Ivar C disse...

mikashi, obrigado. :)

estórias disse...

Sabes, escreves como quem sente as coisas que não se vêm... aquelas coisas que são as únicas que importam no final de alguma coisa que acaba ou muda...
Gostei mesmo deste texto.

Por vezes revejo-me no que escreves.

Muitas vezes podia ser eu a escreve-las.

Obrigada.
Vou adicionar-te, com licença:)

Carla Leite disse...

:) bonito!


escreve com a máxima frequência que conseguires, sim? preciso de ter algo interessante para ler online e em português. ^^

Ivar C disse...

estórias, obrigado. :)

carla leite, obrigado. :)