2.02.2011

respostas a perguntas inexistentes (124)

a minha avó

A minha avó disse-me uma vez que somos esculturas do tempo, que a vida nos esculpe da mesma forma que um escultor o faz à pedra mais sólida. Porque nós todos, de uma forma ou doutra, temos uma alma de pedra. Foi a primeira vez que percebi que a minha avó, apesar não saber ler as letras, sabia ler as pessoas melhor do qualquer outro.
Hoje lembrei-me da minha avó com mais intensidade do que é normal em mim, talvez porque enquanto esperava o comboio, e na preguiça de abrir o livro que tinha entre as mãos, me pus a pensar na forma como a vida já me esculpiu a mim. A morte dela, aliás, foi mais uma pancada certeira nesta escultura em que me petrifico todos os dias.
Quando a minha avó morreu eu estava triste porque me tinha divorciado uns meses antes. Foi com a morte dela que descobri que, afinal de contas, e contra tudo o que eu sentia nesses dias, ainda havia espaço em mim para mais tristeza. Mesmo assim, entre o meu divórcio e a sua morte, ainda teve tempo para me dizer que, com o tempo, eu ia perceber que a minha separação tinha sido uma coisa boa. E disse-o assim, chamando-lhe uma "coisa boa".
Para além da minha avó ter sido aquilo que todos esperam que uma avó seja: alguém com uma paciência do tamanho do mundo, foi também ela a primeira a aliviar-me da carga enorme que eu sentia sobre mim. Não só pelo que disse mas principalmente pela forma como o disse. E se em puto era para casa dela que eu levava gatos, ratos, hamsters, cães e todo o tipo de animais que encontrava na rua e os meus pais não aceitavam em casa; em adulto foi ela a primeira a mostrar-me que eu devia ver o copo do meu divórcio meio cheio e não meio vazio.
Nessa manhã saí de casa dela e fui almoçar sozinho a um restaurante na Costa Nova, e acho que nunca um almoço me soube tão bem. Ainda hoje, esta escultura que aqui anda, tem algumas marteladas dela. E vai ter sempre...

29 comentários:

pois disse...

Ainda hoje, e com o tempo, essa escultura vai notar e valorizar as marteladas que ele lhe ofereceu.

Anónimo disse...

Tive uma avó assim como a tua, uma Avó de A grande que viveu praticamente a minha vida toda (não a vida toda dela claro) em casa dos meus pais. Foi a maior perda que tive até hoje. Morreu há 6 anos e ainda hoje quando ligo aos meus pais quase pergunto pela avó.
Mas também tive uma avó que fingia não saber o meu nome, que me deu uma bofetada não merecida que ainda hoje me dói. Morreu há 15 anos e raramente me lembro dela, e quando me lembro dói-me de facto a face direita.
CR

Estudante disse...

:) muito bonito...

Ivar C disse...

pois, vai sim... sempre. :)

cr, só tive uma que conhecesse, eu. mas percebo-te bem. :)

estudante. obrigado. :)

Blue Eyes disse...

Debaixo da 'pedra mais sólida' há nobres sentimentos... aposto que a vida, ainda, te reserva mais 'coisas boas'!! ;)

Celeste disse...

como eu gostava de ter uma avó assim...mas sabes serei eu uma parecida à tua! O texto ta lindo!

Ivar C disse...

blue eyes, reserva-nos a todos, acho eu. e menos boas também, mas isso passa. :)

Blue Eyes disse...

Então é assim... que a vida nos traga muitas coisas boas e coragem para superar as más!!

Anónimo disse...

Engraçado, também tive uma avó assim e às vezes penso que eu nunca seria uma avó como ela... claro que não tenho filhos, logo não terei netos e isso ajuda :)

memyselfandi disse...

A tua avó devia ser uma pessoa espectacular, Bagaço =) É uma sorte que estejam ou entrem nas nossas vidas pessoas que conseguem fazer-nos enxergar as coisas sobre um prisma totalmente diferente e que sozinhos talvez não conseguíssemos alcançar. No meu caso foi uma Amiga =)
Ainda hoje, de vez em quando, me pergunto se teria sido ou será uma coisa boa, mas agora que te li =) acho que prefiro acreditar nas palavras da tua avó. O copo está meio cheio. Mái nada!
Um grande abraço, Bagaço. Só pode ser virtual, mas fico a dever o real.
Obrigada!

Ivar C disse...

blue eyes, exacto. :)

celeste, acredito que sim, que serás. acredito mesmo. :)

scarlet red, às vezes, para ser uma avó assim, a união biológica não é essencial. :)

memyselfandi, podes acreditar na minha avó. :)

Joy disse...

Foi muito bonito o que escreves-te. A minha avó, aliás bisavó foi uma das pessoas mais importantes da minha vida e também quem deixou umas boas marcas em mim, infelizmente perdia-a há seis meses :( Apesar de que já me andava a convencer que algum dia ia acontecer, não deixou de ser muito triste e sinto imensa falta dela. Compreendo o que sentis-te quando perdes-te a tua avó e ainda bem que as marcas que ela deixou em ti foram das boas.

beijinhos

Helena disse...

Mais uma vez...

A minha avó faleceu há um mês...com 97 anos.

Gostava tanto dela e vou sempre gostar.

Obrigada pela partilha! Vivam as avós e os avôs!

sophie disse...

Cada vez gosto mais de passar por cá!

Eu ainda sou uma felizarda de ter comigo as duas avós.
Também elas me esculpiram.
E ainda o fazem...
E aprende-se tanto com as avós!!!

:)

SubverNotes disse...

É, meu amigo, cada vez mais compreendo o quanto a vida é criativa na arte de dar pancadas em nós. Que tenhamos boa sorte e saibamos aprender com elas! Abraços.

Jeevika Dasi/CL disse...

As avós têm sempre algo de sábio que nos encanta... as marteladas fazem parte...importa é que as marcas que ficam tornem a escultura mais humana e não um deus grego qualquer saído de outras eras... ;)

CoisasDaGaja disse...

Quando há quase um ano, comecei a ler este blog, o que eu gostava mesmo eram os posts das conversas, chegando a saltar os outros textos.
Agora, para ser franca, as conversas divertem-me e adora-as mas estou sempre à espera dos outros textos. Destes. Do coração!

Obrigada***

Ivar C disse...

joy, obrigado. :)

maria, eu é que te agradeço. mais uma vez também. :)

sophie, pois aprende. :)

subvernotes, exacto. mas não é só sorte. de certa forma é ser capaz de ser pequenino. :)

mikashi, lol. exacto. :)

mikashi, acho que às vezes parecer mais frio pode significar ser mais humano também. :)

coisasdagaja, este blogue tem mudado de acordo com a minha vida, e admito que hoje não é o mesmo que há alguns anos atrás. obrigado por continuares aqui. :)

Fátima disse...

Somos pessoas de muita sorte quando nos podemos orgulhar de ter tido alguém na nossa vida que nos tenha marcado tão profundamente.
Também eu tive uma avó assim e uma mãe fantástica e não há dia em que não lembre da falta que me fazem!
Fátima

Anónimo disse...

Muito bonito, muito bonito mesmo.

Só conheci uma avó, faleceu quando eu ainda era crianca mas nem por isso me esqueci dos momentos bonitos, do sorriso generoso do olhar carinhoso e ainda hoje me recordo como me deixava fritar batatas num fogão a lenha, eu nem sequer as deixava fritar comi as quase como que cozidas e ela ...sorria...A minha Anita, dizia ela.
Beijo x
P.S.

Andreia Ressurreição disse...

Li o post e os comentários, para todos aqueles que tiveram uma Avó assim este teu texto diz tudo...
A minha faleceu há sete anos e mesmo assim sp que faço algo penso se ela gostaria do que fiz ou se iria concordar, o que se prova que ela continua bem viva, tal como a tua pois nós vivemos nas memórias dos outros e enquanto alguém se recordar essa pessoa estará sempre bem presente.

Ivar C disse...

fátima, :)

anónima, :)

Bruxinha - a.k.a. ASLR, :)

crise disse...

Adorei este teu texto , fez-me chorar e recordar a minha avó que partiu há tão pouco tempo, e que nos deixou tanta saudade .

Ivar C disse...

crise, :)

Rana disse...

Esta avó é muito inteligente. Ela sabe que ao longo da nossa vida, vamos sendo moldados ou esculpidos, com tudo aquilo que nos possa acontecer (de bom ou de mau).
As perdas que enfrentamos, fazem parte do nosso mundo e afetam-nos física e psicológicamente. A perda dos entes queridos, só trazem dor. Outras perdas, para além da dor que se possa sentir,fazem-nos crescer e como dizia avó, temos de as ver pela positiva. Aprendemos a mudar na forma de viver, sentir, pensar e agir.

Ivar C disse...

rana, era muito inteligente, sim. a inteligência também se esculpe. :)

Fatyly disse...

Sabes Bagaco, estive tempões a pensar nisto e como há coincidências na vida, porque choro quer de alegria, quer por tristeza...mal consigo ver as teclas porque me identifiquei com todo este teu texto, não como neta, mas como mãe/pai e avó que já sou quase há 8 anos.
Primeiro não tive avós por perto, aliás tive os maternos, mas a minha avó era imensamente má e nunca gostei dela, bem ao contrário do meu avô mas morreu tinha eu 7 anos.

Sabes o que ele (um tenente imensamente culto e afável) me dizia muitas vezes? Olha Fatyly todos nós temos que ser "embondeiros", lembra-te sempre disso, tal como a tua avó te disse.

Não me despedi dele porque não deu, mas num dos arquivos que deixou, estava um papel (não sei dele) em que ele escreveu mais ou menos isto: Tenho 28 netos, mas o "embondeiro" vai ser a minha Fatyly. Minha nossa...nunca foi tão acertivo e hoje com 60 anos, já com tanta "pancada certeira nesta escultura", não é por acaso que do lado de uma filha sou avó 4 vezes (pela ausência e perca dos outros).

Um beijo rapaz e nunca te afastes deste grande ensinamento da tua querida avó.

Agora lá vou eu para a finalização de mais um SOS avó:)

*** disse...

Que bonito descobrir-te este lado e a mão da tua avó nesta escultura que eu olho (ou leio) todos os dias. Maravilhada.

Ivar C disse...

lm, obrigado. :)