2.17.2011

amor, amar e ter amado

Devido à greve da CP, e de eu ter ficado encalhado em Espinho, estou num bar perto da estação a alimentar a esperança que passe um comboio que me leve para Aveiro. Se não passar terei que dormir por aí, muito provavelmente no local onde trabalho. Logo se vê.
Mas não é disso que quero falar. Neste mesmo bar onde estou passei muitas horas antes de conhecer a Raquel, ou melhor, antes de a Raquel me conhecer (os que aqui costumam vir sabem que eu a conheci vinte anos antes dela me conhecer a mim). Passei-as ali ao balcão, também à espera do último comboio para Aveiro (mesmo quando podia apanhar um mais cedo, costumava ficar à espera do último só para matar o tempo). Aqui afoguei inúmeras noites em copos de uísque e conversei com estranhos ao balcão tão perdidos como eu. Lembro-me até de passar a noite toda em Espinho, na conversa com uma ex-prostituta com quem me distraí a falar da mania que a vida tem de ser doce e amarga ao mesmo tempo, e por causa da qual perdi o último comboio. Nessa altura o bar chamava-se Estado Líquido e agora chama-se Joker. Embora mantenha exactamente o mesmo aspecto de bar de subúrbio, nota-se que a gestão mudou.
Nessa altura a minha vida ganhara o ritmo dum barco à deriva num oceano tão calmo quanto turvo. Estava bem, ou melhor, estava calmo, mas a minha proximidade com o Amor era a mesma que se tem com os peixinhos dum aquário. Estão ali, são bonitos, mas nunca lhes tocamos.
Agora, neste preciso momento, esses momentos e essas sensações não são mais do que pinturas emolduradas na minha memória. A realidade mudou. Já não procuro cruzar-me com olhares tão perdidos quanto o meu para que o tempo se torne mais leve. Há bocado uma mulher pediu-me lume e eu limitei-me a dizer-lhe que não fumo, e eu tenho a certeza que há três anos atrás lhe teria dito para se sentar que eu ia buscar fogo onde fosse preciso.
Às vezes fala-se muito em elaboradas e românticas declarações de Amor. Eu continuo a pensar que não há nenhuma declaração de Amor tão grande como esta que faço para mim mesmo (e neste caso a vocês), para o horizonte longínquo e silencioso que a Raquel desenhou em mim mesmo. Estou aqui, encontrado num bar onde já me perdi, porque ela existe, e porque a amo mais do que nessa altura pensava que seria possível para um comum mortal como eu. Não sei se isto vai ser sempre assim, porque a única certeza que tenho da vida é a minha própria morte, mas não me custa nada acreditar que sim.
Sejam felizes, que eu vou ver se apanho um comboio.

39 comentários:

Ana, Dona do Café disse...

se isso não é felicidade, anda tão perto :) é bom saber que existe um Amor assim.
beijinho, boa noite e..espero que apanhes esse comboio!

Ivar C disse...

ana dona do café, na verdade não me lembro de mais perto do que isto. só alguns momentos com a minha filha, acho eu. obrigado. apanhei o comboio e a porcaria do meu pc de 200 euros está quase sem bateria. :)

Anónimo disse...

Marta terra-a-terra, só por um momento diz: pc de 200 euros? onde? preciso de um desses!

beijo de mulata disse...

Os seus textos são fantásticos, mas há alguns que quase tenho medo de ler de novo... não vá o sentimento desvanecer-se!

(um) beijo de mulata

Lima e Tequilla disse...

Nota-se que alguém te tocou no coração =)

Ivar C disse...

anónimo, o meu foi no Jumbo, há uns dois aninhos... mas há vários. :)

beijo de mulata, obrigado. não quero meter medo a ninguém. é não o ter... :)

lima e tequilla, :)

sophie disse...

:)

Já percebi que apanhaste o comboio... O que vai para Aveiro e o do Amor...
Felicidades também para ti...

:)

Anónimo disse...

Querido bagaco.
Gosto de ti pela tua sinceridade, pela ausência do medo do julgamento.
Adorei ler te aqui.
Beijo x
P.S.

Fatyly disse...

"amor, amar e ter amado" nas várias etapas por que passaste e fiquei retida numa frase "para o horizonte longínquo e silencioso que a Raquel desenhou em mim mesmo (...)porque a amo" e sinto-te feliz e já sem pachorra ou motivo de perderes o comboio para matar o tempo, ou seja tens objectivos o que falta a muitos e muitas! Sejam felizes que eu gosto de saber que ainda há quem dê valor a estes pequenos pormenores de...e a felicidade é feita de flashes emocionais como este teu post! Parabéns!

Quanto à greve na CP, não poderia deixar de falar o que para mim sempre foi uma idiotice:
1º.- Sendo uma empresa de transportes públicos tantos sindicatos para quê?
2º.- Uma greve é para prejudicar e pressionar o patrão, mas aqui é para prejudicar o povo. No início do mês cobram os passes e bilhetes, o dinheiro entra e assim asseguram os vencimentos e o patrão a rir porque não teve qualquer prejuízo. Fazem greves e quantas vezes fiquei encalhada tal como tu e cheguei a fazer 3 kms a pé para chegar a casa, porque senti na pele os vários moldes de greve de uma classe que ainda hoje poderia actuar de outra maneira.
De tal forma, qe um dia fui eu a fazer greve, e claro depois do que fiz, alguns do meu grupo habitual fizeram o mesmo. Não comprei o passe e no local da vinheta, pus uma "ESTOU DE GREVE". Fui levada ao chefe da estação e só disse "movam um processo que logo vos direi da minha justiça". O certo é que fiquei satisfeita, ou melhor justiçada porque ora caiam cantenárias, ora o material empacava, ora eram as greves e eu e milhares como eu lixadinhos da silva e se não picasse o ponto era menos dinheiro ao fim do mês (a crise sempre existiu na minha carteira), mas andei dois meses sem passe e até hoje estou à espera do processo.
A linha de Sintra é conhecida mundialmente e ainda hoje tem falhas a todos os níveis e continuam a brincar "aos poderosos" com a vida de milhares de utentes que pagam a peso de ouro o único meio que têm para se deslocarem! É o país real que temos.
Atenção que não sou contra as greves, mas sim a forma como esta em particular é feita.
Lá fora, além de assegurarem "a vida" dos utentes" pondo alternativas condignas, o sindicato suporta o salário ao grevista.

Helena disse...

Ai o Amor...é lindo!!! :)

hug * disse...

um abraço amigo bagaço pelo estado de graça em que te encontras, como outrora o disseste... estas a 20cm do chão... mas eu atreveria-me a dizer que estas a alguns metros a mais do que esses 20cm :)
a alegria do amor é tão grande que te preenche de uma forma absoluta e tudo o resto são adereços que enfeitam a vida. ;)

Pearl disse...

Mais um texto que me emocionou... É tão bom amar-se assim... Incondicionalmente!!! E esse sentimento alimenta-nos onde quer que estejamos, nem que sejam horas infiondáveis à espera de um comboio que não vem!!!
;o)))

Estudante disse...

Às vezes é difícil comentar estes textos, porque são tão profundos que certamente a minha cara de "parva" a lê-los seria um comentário suficiente... mas na impossibilidade de mostrar a minha expressão, cá vai um sorriso virtual :)

Briseis disse...

Oh, Bagacito... que pérola! ...mesmo não sendo dirigida às centenas de seguidores do teu blog, acredito que a todos nos tocou e enterneceu um bocadinho. Porque um amor assim é contagiante e perfumado. Obrigada por vires partilhar connosco a sua essência!
Um beijinho

Ivar C disse...

sophie, e adormeci lá dentro... :)

anónima, :)

fatyly, deixa-me dizer-te que eu estou totalmente de acordo com a greve, e os sindicatos existem porque, pública ou não, a empresa tem trabalhadores.
As greves só fazem sentido se forem chatas para os utentes, e eu não estou contra quem fez greve, mas sim contra quem quer diminuir os salários e os direitos dos trabalhadores. :)

maria, :)

hug,um abraço. :)

pearl, yep. :)

estudante, outro. :)

Ivar C disse...

b, obrigado. :)

Framboesa (uma diva de galochas) disse...

Não te custa nada acreditar que sim, e só te faz é bem...Alimenta a alma :-)

grão de pó disse...

se os desencantados também encontram realidades por que vale a pena aqui andar, diria que há esperança no mundo.

=)

Arnaldo Amaral disse...

Este post tocou-me imenso.
Conseguiste fazer algo que está cada vez mais estereotipado sem estereotipos. Espero que sejas muito feliz e obrigado por partilhares estes sentimentos tão belos (:

http://notasacentuadas.blogspot.com/

Poetic Girl disse...

Lindo! Espero sinceramente que tenha passado o comboio! bjs

Fatyly disse...

Sim Bagaco, mas sindicatos dos maquinistas, dos pica-bilhetes, dos que vendem os bilhetes, dos que visionam as linhas, etc. não deveria haver apenas um sindicato?????
"chatas para os utentes"? ora essa, por exemplo não cobravam os passes e aí prejudicavam a empresa e por arrastão até outras como a GALP que a maioria até compravam bilhete e iam de comboio.

O sentido de greve é trabalhador-empresa e nunca trabalhador-utente-empresa.

é só nisto que não concordo, porque de resto também sou contra os empregadores que querem reduzir e tirar direitos aos trabalhadores.

Ivar C disse...

framboesa, exactamente. :)

grão de pó, apesar de valer a pena, não sei se essa é a expressão mais adequada à vida. :)

besta artista, obrigado. :)

poetic girl, passou. um que saiu do Porto à uma da manhã já não fazia parte da greve. :)

fatyly, sim, aí dou-te razão. devia haver só um sindicato. sorry, não tinha percebido bem. um só sindicato teria muito mais força. :)

*** disse...

Bagaço, por um acaso ja escreveste alguma coisa sobre que raio de poder há nos comboios, ou melhor, que raio de ligação têm eles ás nossas emoções?
(Perdoa falar no plural, mas ao ler-te não pude deixar de sentir um bocadinho do que vivo muitas vezes quando me meto no InterCidades.)

memyselfandi disse...

E lá fiquei eu como o Bonga... Caramba! =)

HydraFlama disse...

Grande Bagaço, fico contente por ti e maravilhado com estas tuas declarações de amor subtis e simultaneamente profundas.
Pelos vistos não são só os lugares que mudam ou se alteram, também os nossos pensamentos e estados de espírito.
Talvez esse desencontro de vinte anos tenha ocorrido por uma válida razão, não só para ti, como para a Raquel.
Um abraço sincero e apertado deste amigo (com azeitona por cima)!

Celeste disse...

conseguiste apanhar um comboio que parou na tua estação na altura devida, 20 anos antes provavelmente não teria valido a pena uma vez que nem tu nem ela frequentavam a mesma estação. :D

Kowalski disse...

Escreve maravilhosamente bem. Simples, sem pretensões a escritor de meia-tigela, objectivo e assertivo. Uma mais-valia neste mundo tão gasto da blogosfera.

Ivar C disse...

lm, por acaso já, inclusive num filme... os comboios fazem parte da minha vida. :)

memyselfandi, o Bonga é um cantor angolano de quem eu gosto, mas tu não te pareces nada com ele. :)

hydraflama, é isso mesmo. e portanto, quando estamos em baixo, temos que ter a noção de que é só uma fase. abraço, meu amigo. :)

celeste, é bem possível que isso seja verdade. :)

kowalski, obrigado. :)

TM disse...

.... :)

Rana disse...

Mais um lindo post. Nem sei o que dizer. Não tenho palavras. Embarcar nesse comboio “o comboio do amor”. Sim, porque os comboios têm alma, porque neles viajam pessoas . Pessoas, que têm vontade de viver, sonhar e amar. No fundo é isso que todo o ser humano deseja. BOA VIAGEM.

Ivar C disse...

tm, :)

rana, obrigado. :)

redonda disse...

Gostei muito do que escreveste.

Ainda bem que estás a viver o que estás a viver e que depois conseguiste apanhar o comboio
(se um destes dias voltares a precisar, liga-me, pode ser que estando em S.J.M. possa dar-te uma boleia)
um beijinho
Gábi

Eli disse...

Carago! Eu vi-me ali por momentos naquele texto.

P.S. Dava-me jeito um "Magalhães" , destes novos deste ano, que são uns autênticos "netbook", a preço de Magalhães, é claro!

:))

Obrigada pela partilha. É o facto de dares de ti que torna tudo muito mais interessante para ler e onde nós, comuns mortais, nos identificamos.

:)

Ivar C disse...

redonda, o que acontece é que já não tenho o teu número. desde que te conheci acho que já perdi o telefone duas vezes... e portanto não tens o meu também. Amanhã mando-to (não sei de cor). :)

eli, ainda não vi os novos, mas eu não tenho mãos para aquilo, as teclas são muito pequeninas. se conheceres algum puto que não o compre, acho que podes fazer negócio. :)

Anónimo disse...

O teu texto devia fazer parte da III parte ( cartas, memorias, depoimentos) do livro " Carris de Papel" - o caminho de ferro na literatura portuguesa da autoria de Albert Von Brunn, editorial caminho.
Parabens.

Remexido

ikivuku disse...

Mesmo que não houvesse outra razão este texto prova que as greves são úteis e necessárias.

Ivar C disse...

ikivuku, são sim... e não se diga mal delas. :)

Anónimo disse...

Há já algum tempo que te sigo. E não posso deixar de te dizer que voltaste a fazer-me acreditar que é possível existir qualquer coisa de sensível e genuíno dentro de um homem. Só por isso - e porque acho imensa piada aos diálogos que vais publicando e à maneira meia trapalhona como interpretas o universo feminino - já vale a pena vir aqui :)

Vai escrevendo sempre.

Rosa.

Ivar C disse...

rosa, obrigado. :)