11.13.2012

respostas a perguntas inexistentes (229)

Estava numa fase da minha vida em que não recebia muitas chamadas pelo telefone nem muitas visitas em casa. Era raro. Não tinha namorada e a minha vida social anda muito perto do seu nível mais baixo de sempre.
Lembro-me que nesse dia almocei esparguete com tomate e bebi um copo de vinho, uma refeição habitual, quando estou sozinho em casa. Pus a água a aquecer e, quando começou a ferver, uma colher pequenina de sal e o esparguete lá dentro. Contei exactamente onze minutos a partir dessa altura porque sei, por experiência própria, que é o tempo ideal de cozedura no meu fogão e com a minha panela.
Como sempre também, preparei o tomate à parte. Fui ao congelador buscar três deles congelados, pelei-os, cortei-os em pedaços pequenos e atirei-os para uma pequena frigideira onde já tinha um fio de azeite a aquecer.
Cozinhar sempre me deu uma noção de normalidade, porque normalmente faço-o como se fosse um robô. Repito todos os gestos e tempos em todos os pratos, pelo menos aqueles que preparo com mais regularidade. Aliás, cozinhar é algo que gosto de fazer precisamente quando sinto que a minha vida está a fugir dos eixos e, consequentemente, tenho que lhe dar uma injecção de normalidade.
Nesses dias cozinho da forma que acabei de descrever e faço todos os possíveis por não sair de casa. O défice de normalidade dá-me a capacidade de, por exemplo, ter vontade  de ficar a olhar para qualquer um dos quadros que tenho nas paredes durante vários minutos seguidos. Acho que já cheguei a ficar várias horas, com pensamentos que escapam ao meu consciente. Não que sinta alguma coisa de especial por algum deles, mas sim porque eles fazem parte do meu dia-a-dia. Também leio livros que já li, vejo filmes que já vi ou ouço repetidamente as mesmas músicas.
Deixei a louça suja em cima do balcão da cozinha, amontoada sobre a dos três ou quatro dias anteriores, e fui para a varanda tomar café. Numa das janelas do prédio em frente ao meu, uma mulher punha a roupa a secar. Nunca tinha falado com ela, mas já tinha percebido que passava as tardes fechada em casa com um filho muito pequeno, que às vezes trazia à janela e agia como se lhe estivesse a mostrar o mundo pela primeira vez. Por isso mesmo, quando reparei numa peça de roupa que deixou cair, disponibilizei-me para ir buscá-la e entregá-la.
Não fiz isso com nenhuma intenção especial, nem sequer para me mostrar mais ou menos simpático. Acho que foi mesmo apenas uma questão racional. Eu estava sozinho e sem nada para fazer, ela estava com o filho pequeno em casa e por isso teria pejo em sair à rua. Mesmo assim, quando ela me convidou para entrar, aceitei com entusiasmo.
Disse-me que se sentia muito só porque o marido dela era camionista e passava muitos dias seguidos fora de casa. Passámos a tarde inteira na conversa e, depois de eu ir a minha casa buscar duas garrafas de vinho, jantámos juntos. Quando chegou a hora de ela deitar o filho eu despedi-me e saí, mesmo com a insistência dela para eu ficar mais um pouco.
Senti que se ficasse ia acabar por surgir uma oportunidade de nos abraçarmos, beijarmos e talvez dormirmos juntos. Arrependi-me assim que fechei a porta do prédio e senti a estalada do ar frio da rua, mas continuei a andar. Em minha casa tornei a ir para a varanda, desta vez dissimulado pela noite. Acabei por adormecer a olhar para uma janela vazia.

13 comentários:

EJSantos disse...

"Respostas a perguntas inexistentes". Gostei, parec uma das máximas Zen que li, que me parecem muito profundas, mas que acabo por não compreender. Deixa-me dizer-te: pratico Karaté tradicional. E por isso, quis aprender um pouco da cultura japonesa. Até que aprendi que o Karaté tradicional não é japonês,mas sim okinawan, e que a filosofia é totalmente diferente.
Por isso, que a sabedoria zen fica para quem a aprecie e entenda...
Quanto ao teu texto, só um reparo: os romanos da época clássica diziam - quando os deuses querem castigar-te, dão te tudo o que desejas.
Sei que és ateu :-) mas esta máxima também é para ti. Em algumas situações (disse "algumas", OK?), provavemente foi melhor não conseguir o que querias. Um abraço
EJSantos
PS: que falador estou. O borba funcionou!
EJSantos

Eli disse...

Mesmo?!

Afrodite disse...

A solidão deve ser algo terrível.
Por vezes faço o exercício mental de imaginar como seria a minha vida se dela não fizessem parte as duas pessoas que dividem a vida comigo.
Acabo por desistir desse exercício com receio de sucumbir à dor e à tristeza.


Beijinho
(^^)

AC disse...

A vida por vezes toma formas que não queríamos. A solidão a carência afectiva, a falta de um ombro só para desabafar fazem as pessoas aproximarem-se pela oportunidade...

beijo enorme:)**

Mam'Zelle Moustache disse...

Ai arrependeste-te, malandro?! O marido deve ter agradecido o arrependimento, digo eu... ;p

Unknown disse...

Epá ... como é que conseguiste resistir?

Justiceiro disse...

Acho que não fizeste bem nem mal

Ivar C disse...

ejsantos, o borba também funciona muito bem comigo, acho que tens razão: às vezes é melhor não se conseguir o que se quer. :)

eli, mesmo. :)

afrodite, eu sinto solidão mesmo com muitas pessoas perto de mim. :)

ac, a oportunidade é ou não para desperdiçar? ai está a questão. beijo. :)

Mam'Zelle Moustache, até agora não recebi qualquer forma de agradecimento. :)

eva maria, já consegui tantas vezes... :)

justiceiro, também não sou maniqueísta. :)

MiCéu disse...

...tive choque frontal com o teu post, no qual me revi em situações caricatas, que até à data de hoje pensei apenas acontecerem comigo...afinal há quem partilhe do mesmo estado de patetice e repetição de vez em quando, ainda bem! Criativo o nome do blogue, parabéns!

Ivar C disse...

micéu, e eu a pensar que não era pateta. :)

Carmo disse...

A sério Bagaço? Eu sinto-me uma anormaleca por fazer todos os dias os mesmo gestos na cozinha. Não é tão mais facil e razoavel pegar numa peça de fruta e saboreá-la, assim como se faz com um bom vinho?

Só tu para um desfecho desses, a mulher estava tão solitária ;)

Mas percebo um camionista é de meter respeito, ai isso é.

Fatyly disse...

Fizeste muito bem porque se tudo tivesse ido mais além...juntarias às emoções solitárias, um peso de consciência...porque sim!

Ivar C disse...

carmo, lol! eu respeito todas as profissões. :)

fatyly, é que é isso mesmo. :)