casamento
Já
não me lembro porque é que disse aquilo à minha mulher. Talvez o
elevador do hotel me tenha dado a sensação de que o mundo não
ouviria, que aquilo ficaria um segredo entre nós. Sei lá, que
talvez aquela ideia absurda nem sequer ousasse sair dali, daquele
pequeno compartimento que mais não faz do que transportar pessoas de
um andar para outro. Sei que ela nem sequer respondeu e o silêncio
que se fez a seguir foi, talvez, o silêncio mais pesado que senti na
minha vida inteira.
-Talvez
me venha a arrepender de ter casado contigo.
Admito
que a minha primeira preocupação foi ter estragado, eventualmente,
a noite de núpcias. Não que naquela altura andasse propriamente com
a libido no máximo, mas sempre tinha tido essa ilusão de ter sexo num
hotel caro com uma mulher vestida de noiva.
Na
verdade, eu tinha casado com ela porque estava completamente
apaixonado e porque tínhamos uma vida sexual bastante boa. Casei,
portanto, sem a mínima dúvida sobre o que estava a fazer. Mas
depois, durante o casamento, e por causa dum pequeno gesto que não
me saiu mais do pensamento, pensei que talvez me pudesse arrepender.
Tinha
chegado a hora de irmos falar com todos os convidados, um por um,
mesa por mesa, e eu abracei-a como sempre tinha feito durante os anos de namoro.
Ela tirou o meu braço dos ombros e cruzou-o com o dela. Em vez de
irmos abraçados, fomos apenas de braço dado.
- Há
convidados respeitáveis. - disse – Portemo-nos como pessoas
casadas.
Foi
a primeira vez que pensei que não conhecia totalmente a mulher a quem tinha acabado de prometer passar o resto da minha com ela. Talvez houvesse uma mulher antes do
casamento e outra depois do casamento, como muitos amigos meus já
casados, alguns até já divorciados, me tinham avisado. Por um
segundo não a reconheci nem no seu comportamento, nem sequer no seu
timbre de voz.
Ela
sentou-se num dos sofás da suite do hotel. Numa das paredes estava
pendurado um quadro para o qual eu não conseguia deixar de olhar.
Era uma pintura assumidamente abstracta mas que, pelo menos para mim,
se assemelhava como figurativa. Um borrão que desde o primeiro
momento me parecera um bando de pássaros a levantar voo numa
floresta densa, talvez por ter havido um disparo duma arma.
- Nem
sequer vais olhar para mim? - Perguntou.
- Estou
a contar fazer mais do que olhar. - respondi sem tirar os olhos do
quadro.
Ela
não se riu. Pelos visto, o segredo que eu lhe contara no elevador
tinha passado para o nosso quarto de hotel, talvez até para a nossa
vida. Achei melhor enfrentar a situação que eu próprio tinha
criado, em vez de contorná-la como era meu hábito.
- Estou
com medo de não saber com quem casei.
Enfrentei-a
olhos nos olhos. Ela tinha uma expressão nova, como se de repente se
tivesse transformado numa estátua zangada. Eu próprio me assustei e
decidi mudar de estratégia. Lancei-lhe um anzol,
algo a que ela pudesse responder facilmente, para ver se aquele
momento de tensão acabava. Dizendo-lhe o que sentia duma forma mais suave do que a realidade.
- Não
sei o que se passou comigo. Fiquei com medo que tu mudes. Na verdade
fiquei com medo de te perder de repente. Nem sei bem porquê.
A
estátua voltou a ser pessoa. Aproximou-se, segredou-me que eu era um tolinho e fizemos Amor. A paz tinha voltado. No entanto, cinco minutos depois de ter casado,
já me sentia preso a algo maior que o próprio casamento.
18 comentários:
É triste. E assumidamente franco.
As grandes pessoas têm esses rasgos de lucidez desarmante. Às vezes não os partilham no momento imediato, mas, inevitivavelmente, sentirão mais do que uma vez a verdade dolorosa e incontornável.
Só recentemente tornei-me seguidora do teu blogue e já o leio com avidez, tornada vício.
Parabéns! Tratas bem as palavras:).
Não entendo porque o casamento assusta tanto os homens, sobretudo, porque razão têm tanto medo de que a parceira mude!
Ainda assim, considero de extrema importância o namoro, para que ambos se possam conhecer... mas nunca conhecemos o outro na sua totalidade!
Temos de acreditar e seguir em frente... aquilo que os amigos dizem é deles, porque bem sabemos nós o que eles fizeram ou fazem... enfim!
Beijo!
Gostei muito!!!!!
Dá que pensar...
maria ana, obrigado. :)
alexandra, este texto é ficção, apesar de tudo. :)
fatyly, obrigado. :)
flutuações da mente, :)
Não me querendo tornar repetitiva (mas tornando...), muitos parabéns por mais um texto excelente!
uiiiiiiiiiiii...
lily, obrigado. :)
dri, ui?! :)
Ena Pá. Não sei o que te diga. Casei há 7 anos. Continuamos muito bem. Entretanto, veio o nosso filho, que dá trabalho, mas é um bébe´adorável.
Vivo contente no meu dia-a-dia. Trabalho, em casa cozinho e limpo. Vamos dividindo tarefas. Estudo...
O que dizer? Para mim, casado ou em união de facto, vai dar ao mesmo. O casal: ou funciona ou não (e digo isto com todo o conteúdo relativo a uma relação de casal).
Mas gostei do teto, excelente.
Um abraço
EJSantos
Senti, também por um pequeno pormenor, os mesmo no dia do meu casamento. Ainda assim casei, ainda assim tive filhos com aquele homem, porque apesar daquele rasgo de lucidez momentâneo, sente-se também aquela sensação do "se calhar estou a exagerar, com o tempo limamos as arestas todas". Puro engano! Na sua ficção não sei quanto tempo demorou a partir para uma nova viagem. Eu demorei 10 anos. Demasiado tempo perdido iludida com o "limar das arestas".
Carla
ejsantos, ainda bem. eu não acho que o casamento, só por si, seja mau. acho que cada acaso é um caso... :)
carla, era sobre isso que eu queria falar, sim. :)
espero que o adormecer.pt seja um sucesso porque escreves de facto muito bem.
ahh fico à espera de edições para adultos enquanto não tenho crianças.
i, obrigado. estou a trabalhar nisso. :)
Talvez um dia eu venha a vêr o casamento de outra forma...
Não me parece que o papel onde nos "promete e oferece" um ao outro seja importante...é assustador...ali prometes que vais amar e ser amado??? a vida toda???....como sabes???
mas ...Já o fiz...duvido que o repita...não gosto de cuspir po ar...mas tenho aquela sensação...:P
quase nos "entas", és tu e eu. :)
No dia do meu casamento ele disse me que deveria ter levado o cabelo solto. Em onze anos nunca consegui arrumar as fotos... É por aí . :-) Parabéns pelo texto !
xana, obrigado. :)
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