piano
Estou numa casa que não é minha. Não sei de quem é, para ser sincero. Sei que tem um piano e que entrei aqui com uma mulher que acompanhei desde um restaurante na baixa da cidade, enquanto os candeeiros das ruas cochichavam em segredo sobre nós. É natural que o fizessem. Eles têm-me visto todas as noites por aí, sozinho que nem um cão, à deriva pelas ruas labirínticas de Aveiro.
Convidou-me a entrar. Aceitei na condição de ter dois copos e uma garrafa de vinho, como que a dizer-lhe que esperava sentar-me com ela a conversar antes de irmos para a cama. Se é que vamos para cama, pergunto-me em silêncio. Ela estende-me um copo generosamente servido com um vinho que diz ser do Douro. Reparo nos dedos dela, que de tão finos me espantam por conseguirem segurar um copo tão grande e cheio. O piano deve ser dela. A pianista deve ser ela. Talvez a casa seja dela também.
Dou o primeiro gole e sento-me num sofá de um só lugar que me parece demasiado limpo para a roupa que trago vestida desde manhã. Ela puxa uma cadeira de madeira e senta-se perto de mim, talvez para evitar que as paredes ouçam a nossa conversa. Sou eu quem está mais desconfortável, apesar de tudo. Começo a sentir-me um monstro na casa duma bela qualquer. É a primeira vez que me apetece beijá-la.
Nada lhe falha nos gestos, como se os tivesse ensaiado uma vida inteira. Já eu, a pousar o copo na mesa de vidro da sala tenho que fazer três tentativas para não entornar vinho. O som do vidro com vidro parece-me uma bomba a atingir o solo. Fico nitidamente em desvantagem. Estou inseguro, intimidado. Ela não.
As mesas do restaurante estavam todas ocupadas. Ela chegou sozinha e perguntou-me se podia sentar-se. Foi o empregado que moderou o nosso encontro, assim que nos viu juntos. Pelos vistos somos os dois clientes habituais do mesmo sítio, apesar de eu nunca a ter visto na minha vida. Não sabia que eram amigos, disse ele. Eu também não, respondi. Ela sorriu. A conversa entre nós continuou a partir daí, do simples facto de estarmos juntos por uma casualidade. Jantámos, bebemos, saímos dali.
Pego no copo de novo. As marcas redondas que foi deixando na mesa de vidro fazem o símbolo dos Jogos Olímpicos. Costumo fazer isso várias vezes, pousar o copo de forma a fazer um desenho qualquer. Talvez, afinal, eu não esteja assim tão nervoso.É a primeira vez que me recosto para trás. Sinto o veludo do sofá a segredar-me coragem enquanto ganho ângulo suficiente para lhe ver o corpo quase todo. É bonita. Não sei bem de quem é esta casa, mas uma conversa com um bom copo de vinho é a melhor forma de o descobrir. Tocas Piano? E ela sorri.
10 comentários:
Posso não comentar e ficares na mesma com a ideia que comentei?!
:P
eli, claro. obrigado por estares aí. :)
Eli, isso é o mesmo que a rapariga da história perguntar ao rapaz se podem ficar só à conversa e ficarem com a ideia de que fizeram sexo...
;)
anónimo, :)
Muito bom! Deliciosos os pormenores dos candeeiros das ruas e do veludo do sofá. ;)
Mam'Zelle Moustache, obrigado. :)
Quando parar de rir, respondo ao anónimo!
ahhahahaahhahaahhahaha
eli, lol. :)
Não cabe ao texto, mas...Fascina-me Aveiro, sem nunca ter ido à Portugal...e não é que ontem conheci um botequim “Quinta do Portuga”, aqui em Santo André-SP/Brasil, e para a minha felicidade, ao visitar o site do boteco vejo que seu dono veio de Aveiro...que delícia. Voltarei mais vezes ao Quinta do Portuga, só pra me imaginar aí por essas terras. Ah, sim...adoro os seus textos;)
kelly, vê lá se esse aveirense tem ovos moles... :)
Enviar um comentário