5.24.2012

por acidente

Houve uma determinada altura na minha vida em que me tornei amigo de várias mulheres por razões muito concretas, isto é, dava-me bem a conversar com elas sobre temas muito específicos, sendo que a cada uma delas correspondia um único tema. Por exemplo, sempre que saía com a Sónia acabava a falar de música, sempre que saía com a Cristina acabava a falar de política, sempre que saía com a Susana acabava a falar do trabalho dela e do meu. Nunca aconteceu apaixonar-me por nenhuma destas mulheres, mas sei que tive com elas uma forte relação de amizade. Com algumas, aliás, ainda tenho.
Isto aconteceu-me de forma tão intensa (num ano devo ter feito cerca de vinte amigas assim), que cheguei a confessar a um amigo meu que se calhar nunca mais ia conseguir apaixonar-me na vida. Cada vez que conhecia uma mulher, estabelecia-se automaticamente entre nós este tipo de relação monotemática. Às vezes em casa, outras vezes num bar qualquer, ficávamos horas a falar e nunca sobrava espaço nem vontade para um mínimo de sedução que fosse. Com esse amigo meu, por engraçado que possa parecer, assim como com todos os meus amigos homens, isso nunca aconteceu. As conversas sempre variaram de assunto com a mesma velocidade com que se abre uma cerveja ou se enche um copo de vinho.
Um dia distraí-me ao volante e bati na parte de trás doutro carro. Foi num semáforo, em que eu era o segundo da fila. Quando mudou para verde, não reparei que o condutor à minha frente continuava parado e avancei. Não foi nada de grave, apenas uns riscos no pára-choques, mas o condutor da minha frente era uma mulher que se mostrou bastante nervosa. Gritou e empurrou-me várias vezes enquanto eu lhe dizia para ter calma, que aquilo não tinha sido nada e que eu assumiria sem problema nenhum os poucos danos do acidente. Por fim, quando se acalmou, explicou-me que o marido dela adorava o automóvel e se ia zangar. Acabou mesmo por me confessar em jeito de desabafo que ele, para além do necessário para a gestão da vida a dois, só falava de automóveis. E foi assim que conheci a Tatiana.
Inventámos uma desculpa qualquer para não ir trabalhar, eu e ela, e começámos a procurar uma oficina que arranjasse o carro no próprio dia. O objectivo era o marido dela nem sequer chegar a saber do acidente. Encontrámos uma, mas que ia precisar do dia quase todo para o fazer, por isso convidei-a para almoçar e acabámos por passar  bastante tempo juntos.
Podem não acreditar, mas foi dos melhores dias que tive naquela fase da minha vida. Almoçámos num pequeno restaurante da zona histórica de Aveiro, depois fomos passear para a praia, onde tirámos os sapatos e deixámos quilómetros de pegadas na areia, sempre a conversar sobre todos os temas possíveis e imaginários. Praticamente não houve silêncios entre nós, com excepção dum momento ao fim da tarde em que o Sol se começou a pôr e nos calámos ao mesmo tempo. Foi mesmo antes de voltarmos para ir buscar o carro dela e, nessa altura, já eu me sentia completamente apaixonado por ela.
Passei os dias seguintes a pensar praticamente só nela. Nela e no vento que tinha feito da nossa prolongada conversa um segredo daquela praia. O mesmo vento que tinha feito dançar os seus longos cabelos castanhos e desenhado perfeitamente o perfil dos seus seios na camisola verde escura. Pensei na forma como os seus profundos olhos negros me tinham trespassado o corpo, fazendo-me sentir transparente. Pensei em tudo, até em telefonar-lhe para tornarmos a sair.
Nunca o fiz. Despedi-me dela à porta da oficina com um estranho abraço quente e frio ao mesmo tempo. Quente por gostar dela, frio por saber que era o primeiro e o último. A Tatiana nunca o soube, mas foi ela que me fez acreditar que em mim ainda podia haver paixão e Amor, foi ela que que me fez perceber que as minhas conversas monotemáticas com tantas mulheres não eram senão um produto de mim mesmo. Não das minhas amigas. Era como se o meu coração tivesse sido um campo estéril durante muito tempo, até esse dia.
Passado pouco tempo apaixonei-me outra vez, por acidente. Até hoje.

20 comentários:

Pedro disse...

Que história engraçada =)

Ivar C disse...

pedro, :)

Sofi disse...

Acabaste de desmentir aquela frase que as vezes se vê nos carros: "lets not met by accident!"
Adorei a história :)

Ivar C disse...

vadia, obrigado. :)

Salsa disse...

e as historias de amor não são quase sempre um acidente/incidente de percurso!

Ricardo disse...

Gostei bastante de ler desta historia, percebo bem o que está nessas palavras.

um abraço.

Anónimo disse...

Olá,
chama-se a isso um engate por acaso. E por acaso não foi.Mas foi finalmente....
Bonita e simples história. Li presa à palavra.....
Boa sorte

Ivar C disse...

salsa, pois não... mas às vezes parece. :)

ricardo, obrigado abraço. :)

rita esteves. obrigado. :)

Unknown disse...

Depois de ler isto decidi deixar de ser uma condutora tão atenta, pode ser que na próxima vez que parar num sinal vermelho tenha uma surpresa...

Ivar C disse...

lavieenbleu, espero que não tenhas um carro daqueles em que dá medo bater, só por causa do orçamento dos consertos, lol. :)

Flutuações da mente disse...

Só podes ser muito engraçado. Gostei!
Obrigada pelos momentos de divertimento EHEHEHE.

Ivar C disse...

flutuações da mente, sou um deprimido, vá lá. :)

Mam'Zelle Moustache disse...

Gostei! (mais uma tentativa para não receber um "lol". Estou mesmo a esforçar-me ;). Aposto que desta vez nem vais ficar constrangido.)

Unknown disse...

Bagaço amarelo, o arranjo do meu carro é capaz de não ficar muito barato, mas se valer a pena... ;-)

Ivar C disse...

Mam'Zelle Moustache, estou muito constrangido mesmo. nem imaginas... até porque eu pensava que um "lol" era uma coisa boa. :)

lavieenbleu, é por isso que eu tenho um carro pequenino e baratinho. posso bater em quem quiser. :)

Mam'Zelle Moustache disse...

Hum... ok. Sendo assim, já me calo ;)

Fatyly disse...

E o defeito não estaria nelas ao estabelecerem o tema da conversa e tu ias na onda?

Uma batidela e a pobre coitada estava mais aflita pelo que o marido ia dizer (99,9% dos maridos procedem assim e há muitos que tratam dos carros melhores que das mulheres e filhos) fez com que tu e ela falassem de tudo...daí a minha dúvida.

E não há maior verdade do que a que contem a tua última frase...porque ninguém se apaixona porque quer já que é um produto inexistente à venda:) mas por acidente...no tal destino em que eu acredito.

Gostei!

PS: Só agora notei que começaste a escrever Bagaço e não Bacaco, porque a tua fã volta e meia pergunta se não tens escrito e para te dizer que era mais fácil com o c cedilhado:)

Dei-lhe o "olha-me", adeptos do futebol e a do gato...e nem te digo o que ela me disse sobre o nome do teu belo bichano, e que agora sim, já não tens o erro no nick lolll

(ela também já tem imensos do Ivar e qualquer dia só teus...terá um livro e o meus tinteiros é que ficam secos).

Ivar C disse...

fatyly, obrigado. Isso do Bagaço não fui eu, foi o blogger. Eu sempre escrevi com ç mas ele punha apenas o c. :)

Isabel disse...

Que engraçado! Às vezes estou a conduzir e penso que posso encontrar o homem da minha vida ali, no meio do trânsito, já comentei isto com amigas algumas vezes, elas acham sempre que eu estou maluca. Afinal, pode acontecer mesmo! Vou ficar mais atenta! :)

Ivar C disse...

isabel, não há lugares definidos para que tal coisa aconteça. por isso não estás maluca de certeza. :)