5.17.2012

locutora

Confunde-me esta coisa de me apaixonar pelo desconhecido, mais propriamente pelas desconhecidas. Uma vez, por exemplo, andei doente de Amor por uma locutora de rádio que nunca cheguei a ver. Para além da voz, nada mais. Creio que a culpa foi essencialmente do meu despertador, que me acordava sempre à mesma hora na mesma estação. Naquele período do dia em que ainda não estamos despertos, mas também já não estamos a dormir e em que, portanto, o sonho se dissolve facilmente na realidade, era a voz dela que me embalava.
É verdade que nunca a cheguei a ver, mas também é verdade que ela me fez perceber uma das muitas coisas que um homem procura numa paixão: um abrigo. Durmo sempre com a persiana corrida, deixado os seus buracos abertos. Desta forma, todas as manhãs a luz do Sol vai entrando devagar no quarto, como se tivesse que pedir licença para me vir despertar dum sono bom. Nesse momento não sei como está o mundo lá fora. Talvez haja uma revolução, talvez um acidente na rua tenha feito vítimas mortais, talvez dois homens se agridam um ao outro depois de um desentendimento no trânsito. Nunca me interessou. Dentro do meu quarto, por aqueles dias, a voz dela era o meu mundo e dizia-me que estava tudo bem. Ela também gostava dessa ténue luz que me espreitava, e depois punha uma música a condizer Só para mim.
Senti a falta dela quando, por causa do meu horário de trabalho, passei a acordar mais tarde. Durante alguns dias, por não a sentir perto de mim, levantava-me ainda ensonado e passava o resto dos dias a dormir em pé. Alguma coisa estava mal comigo, e demorei tanto a curar a falta dela como se fosse um outro Amor qualquer. Mas, claro, como se fosse outro Amor qualquer, lá acabei por passar a ressaca.
Hoje acordei mais cedo do que o costume e foi dela a primeira voz que ouvi. "Se ainda está no vale dos lençóis, fique a saber que tem mais sorte do que eu, e aproveite para ouvir esta música ainda de olhos fechados", disse. Eu fechei os olhos e ouvi-a.

15 comentários:

Estudante disse...

:) eu acho que a voz pode ser um atributo muito atraente!

Ivar C disse...

estudante, pode mesmo. :)

Flutuações da mente disse...

Muito bom!

Fatyly disse...

Também adoro acordar e ver logo a luz do dia... e... há vozes que embalam MESMO! Como gosto de saborear e dar imenso valor a esses NADAS da VIDA!

Tu descreves o quotidiano enfadonho para muito de uma forma bem desperta!

Anónimo disse...

Não me digas que é a "minha" Ana Moreira! Temos já aqui um problema.

Fiquei triste quando ela mudou de horário e passou para as 11.

Ana, és a maior! (nunca se sabe quem é que está a ler.)

Maria-Ninguém disse...

Todo este texto deu-me uma sensação acolhedora, de «abrigo». Foram palavras que iam fluindo em mim e que por tão bem que sabia, eu ia deixando. Obrigada pela sensação que transmitiste.

Ivar C disse...

flutuações da mente, obrigado. :)

fatyly, obrigado. :)

manuel, somos todos iguais. :)

maria-ninguém, eu é que agradeço a presença. :)

rfsduarte disse...

Assim, arruma a "casa" Bagaço, brilhante!

nos"entas!!!! ( e feliz) disse...

Engraçado como nos "enamoramos" da voz de alguem que nem conhecemos.....mas tbm ja me aconteceu!!

Ivar C disse...

rfsduarte, :)

quase nos entas, exactamente. :)

Ondas disse...

A voz é algo que nos pode simplesmente provocar arrepios, mas aqueles arrepios doces que...:) há pessoas assim, afortunadas :)

Eli disse...

Ena...

(engolindo em seco)

(não, não vou dizer que a voz é minha)

... aquele início de texto parecia tirado da minha vida (versão masculina).

Ai!

Ivar C disse...

sm, se bem que a voz também pode causar arrepios amargos. :)

eli, não há coincidências. :)

Eli disse...

Será?! Não deve haver, eu acredito que não haja... mas...

Parece que ando enganada há tanto tempo...

Ivar C disse...

eli, :)