é azul
Está a chover a cântaros, diz ela. Eu olho para avenida, que se estende até ao fim da vista, surpreendido. Apesar das gotas da chuva deslizarem suavemente pelo vidro da janela, e dos irrequietos guarda-chuvas que se movem lá em baixo como formigas desorientadas, eu ainda não me tinha apercebido da chuva. Estava deslumbrado com o cinzentismo do dia, pontilhado pelas cores vivas de alguns desses guarda-chuvas. Adoro quando chove na Primavera, respondo-lhe.
Olho-a de lado. Parece hipnotizada pela mesma dança de pontos coloridos que me seduziu a mim e parece adivinhar-me o pensamento. Os guarda-chuvas pretos são de homens, os guarda-chuvas coloridos são de mulheres. Só as mulheres é que dão cor aos dias cinzentos.Ela sorri timidamente. Eu também.
Tem sido assim desde manhã cedo, enquanto esperamos os dois por uma consulta de cardiologia na sala de espera dum oitavo andar qualquer, num edifício que tenta passar despercebido pela cidade. Não nos conhecemos, eu e ela, por isso não temos muito para dizer um ao outro. Vamos partilhando com frases curtas e soltas a paisagem amortecida que, enquadrada pela janela, mais parece um quadro vivo impressionista.
Os jornais e revistas em cima da mesa central são desinteressantes e estão desactualizados. Na verdade, mais parecem cadáveres retalhados pela ânsia dos doentes que ali esperaram a sua vez em dias anteriores. Eu e ela, estranhamente, estamos calmos perante esse desolador cenário de papel morto.
Ainda não lhe perguntei porque é que está ali, nem vou perguntar. Nunca são boas notícias, as que levam alguém a visitar um cardiologista. Por isso mantenho-me calado na esperança de que assim consiga também emudecer a doença. Não tenho dormido bem por causa de arritmias cardíacas, e os meus problemas de coração vêm de longe. É isso, penso. Calo-me.
Uma porta abre-se e chamam-na. Fico a saber-lhe o nome. Teresa. Ela é engolida pelo ávido consultório e, nem sei bem porquê, a paisagem lá fora deixa automaticamente de fazer sentido. Passo a sentir-me exageradamente só, e confunde-me sentir solidão pelo facto duma mulher que nem sequer conheço se ter ausentado assim, de repente.
Agarro num desses pedaços de papel e leio um pedaço duma notícia que deve ter, a ver pelo estado dele, pelo menos uns três meses. É sobre um acidente numa auto-estrada. Três feridos graves e um morto. Pergunto-me com estarão agora esses feridos. Talvez estejam em casa, a beber um café quente e a comer torradas com manteiga, numa espécie de aconchego recompensador. Amarfanho o papel e atiro-o para o caixote. Espero.
A porta que engole pessoas abre-se de novo e chamam o meu nome. Cruzo-me com a Teresa e tento perceber-lhe, através do olhar, como correu a consulta. Não consigo, mas pelo menos ela diz-me adeus. Adeus, repito. Fico a vê-la percorrer o longo corredor para a liberdade do dia, lá fora, sem médicos nem conversas sobre morte e doenças. Pega num guarda-chuva antes de sair. É azul.
Olho-a de lado. Parece hipnotizada pela mesma dança de pontos coloridos que me seduziu a mim e parece adivinhar-me o pensamento. Os guarda-chuvas pretos são de homens, os guarda-chuvas coloridos são de mulheres. Só as mulheres é que dão cor aos dias cinzentos.Ela sorri timidamente. Eu também.
Tem sido assim desde manhã cedo, enquanto esperamos os dois por uma consulta de cardiologia na sala de espera dum oitavo andar qualquer, num edifício que tenta passar despercebido pela cidade. Não nos conhecemos, eu e ela, por isso não temos muito para dizer um ao outro. Vamos partilhando com frases curtas e soltas a paisagem amortecida que, enquadrada pela janela, mais parece um quadro vivo impressionista.
Os jornais e revistas em cima da mesa central são desinteressantes e estão desactualizados. Na verdade, mais parecem cadáveres retalhados pela ânsia dos doentes que ali esperaram a sua vez em dias anteriores. Eu e ela, estranhamente, estamos calmos perante esse desolador cenário de papel morto.
Ainda não lhe perguntei porque é que está ali, nem vou perguntar. Nunca são boas notícias, as que levam alguém a visitar um cardiologista. Por isso mantenho-me calado na esperança de que assim consiga também emudecer a doença. Não tenho dormido bem por causa de arritmias cardíacas, e os meus problemas de coração vêm de longe. É isso, penso. Calo-me.
Uma porta abre-se e chamam-na. Fico a saber-lhe o nome. Teresa. Ela é engolida pelo ávido consultório e, nem sei bem porquê, a paisagem lá fora deixa automaticamente de fazer sentido. Passo a sentir-me exageradamente só, e confunde-me sentir solidão pelo facto duma mulher que nem sequer conheço se ter ausentado assim, de repente.
Agarro num desses pedaços de papel e leio um pedaço duma notícia que deve ter, a ver pelo estado dele, pelo menos uns três meses. É sobre um acidente numa auto-estrada. Três feridos graves e um morto. Pergunto-me com estarão agora esses feridos. Talvez estejam em casa, a beber um café quente e a comer torradas com manteiga, numa espécie de aconchego recompensador. Amarfanho o papel e atiro-o para o caixote. Espero.
A porta que engole pessoas abre-se de novo e chamam o meu nome. Cruzo-me com a Teresa e tento perceber-lhe, através do olhar, como correu a consulta. Não consigo, mas pelo menos ela diz-me adeus. Adeus, repito. Fico a vê-la percorrer o longo corredor para a liberdade do dia, lá fora, sem médicos nem conversas sobre morte e doenças. Pega num guarda-chuva antes de sair. É azul.
20 comentários:
Gostei muito...
Estou apaixonada por ti.
hummm....acho que não tenho nenhum chapeu de chuva "colorido".....:)
As melhoras !!
I., obrigado. :)
anónimo, olha que não. :)
quase nos "entas", não estou doente. é ficção... :)
Já vinha aqui desejar que a consulta tivesse corrido bem, até que li a resposta ao anterior comentário :) Ainda bem que é ficção.
beijinho
redonda, obrigado na mesma. :)
Ah bom!!! Ainda bem.
Se bem que FLIRT faz bem ao coração :)
quase nos entas, pois faz... é o melhor remédio. :)
"Só as mulheres é que dão cor aos dias cinzentos".
Delicioso:)
Gosto tanto de vir ler-te ..o teu jeito de escrever delicado e simples e a forma como vês as coisas. Tens muita criatividade, tenho dito, brincas com as palavras e com as situações mais banais. :)
Andas a habituar mal a malta, grande texto xD
maria madeira, obrigado. :)
anaMartins, obrigado. :)
H. Santos, obrigado. :)
Adorei bagaço! Lindo!
só sedas. obrigado. :)
Todos devemos fazer exames de vez em quando por mil motivos já que se não olharmos por nós ninguém o fará. Mas só o facto de saber que temos de ir enfrentar todo aquele ambiente, já dá aquele gelo na barriga. Mas os médicos não falam só de doenças e morte...muitos não gostam é de ouvir...está a abusar do alcool, dos petiscos, do sal, não bebe água...e o coração bate a mil de tão enfurecido que fica:):)
Ainda bem que me lembraste, dia 7 lá vou à consulta para a revisão dos 610000000000000kms
De facto o colorido dos chapéus de chuva das mulheres dão colorido aos dias cinzentos...quando não se enfiam onde não devem ou levamos com eles quando se abrem pela força do vento.
Como tal nunca uso e nem imaginas como os kispos ficam mais bonitos, alegres, coloridos com a banhoca que levam.
Só queria óculos com limpa-para-brisas loll
Gostei:)
fatyly, obrigado. :)
É verdade Bagaço, cores é mesmo com as mulheres. Engraçado como a cor interfere com o meu estado de espirito.
Mas porque vives tão longe?!
Gostava de ter-te por perto como amigo, ou quem sabe pessoalmente és diferente, mas na escrita transbordas sensibilidade.
Fazes com que situações banais, nos toquem mais na alma e nos despertem a realidade.
:)
carmo, não te deixes enganar. somos sempre uma coisa a escrever e outra pessoalmente. é por isso que escrevemos, acho eu. quando se escreve é-se mais esclarecido do que na realidade. :)
Foi o que eu disse!
:)
carmo, :)
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