12.18.2010

ver (mais um conto de Natal)

A primeira coisa que fez foi atirar os enfeites de Natal pela janela. Todos eles pareciam completamente alheados da sua tristeza e talvez até andassem a gozar com ele, pensou. Um Pai Natal de papel, algumas fitas e bolas coloridas, uma estrela e algumas prendinhas em miniatura compradas numa loja dos trezentos. A árvore, essa, ficou ali abandonada no canto da sala, tão nua quanto o seu espírito.
Mastigava o tempo como se mastiga comida de que não se gosta muito, como se a sua função mais importante neste mundo fosse transformar continuamente oxigénio em dióxido de carbono e o seu corpo já se tivesse apercebido disso. Respirava sofregamente para não fazer mais nada. Nem pensar, nem sorrir, nem amar. E dessa incapacidade de amar apercebeu-se logo na terceira noite após o divórcio, que as duas primeiras passou-as a deambular pensamentos soltos dentro duma insónia cansada demais para os perceber, quando uma vendedora lhe tocou à campainha da porta plastificando um sorriso de serviço nos lábios. Ele espreitou pelo óculo e não abriu, não se preocupando sequer em manter o silêncio para fingir que não estava ninguém em casa.
O problema do divórcio não era só a distância repentina da mulher de quem esforçadamente aprendera a não deixar de gostar. Eram a casa e a cama vazias, era a indiferença dos telejornais que teimavam em não dar nenhuma notícia sobre o fim do mundo e, por aqueles dias, era também a noção de que vinte anos com ela tinham sido um erro irrecuperável. Fechou-se em casa e em si mesmo. Na verdade, sabia que os dias continuavam a passar apenas porque lá fora já fizera noite, já se fizera dia, e agora anoitecia outra vez.
A campainha tornou a tocar, desta vez mais tempo, como se quisesse avisar que a vendedora não ia desistir. Abriu a porta disposto a resolver aquele ruído na sua tristeza duma só vez, provavelmente expulsando-a com o vocabulário mais cavernoso e brejeiro que conhecia, para tornar a enrolar-se sobre si mesmo no sofá como um animal que precisa de hibernar. E veio o silêncio. A mulher mantinha ainda o sorriso como se o tivesse conseguido petrificar, e sendo pedra parecia poder quebrar com ele qualquer coisa. Quebrou-o a ele, pelo menos, que pela primeira vez em alguns dias sentiu os músculos da face e do peito a abrandar.
Sim? Perguntou ele tentando que a voz lhe saísse o mais inofensiva possível.
-Sou a sua vizinha de baixo. - disse ela pondo-lhe o olhar mais analítico possível. - Acho que os seus enfeites de Natal caíram na minha varanda...
A vizinha de baixo, constatou ele contemplando-a como se contempla o mar a primeira vez que se o vê. Também os seus cabelos lhe ondulavam nos ombros como uma maré enchente, também nos seus olhos se desenhava a linha do horizonte sustendo uma imensidão azul. Também tudo. E como durante anos nunca a tinha visto assim, passando por ela da mesma forma que se passa por um transeunte anónimo qualquer num centro comercial, talvez a sua nova condição de divorciado não fosse assim tão má. Pelo menos tinha uma nova forma de ver.

15 comentários:

memyselfandi disse...

Também gosto de acreditar que tudo é possível e que nunca é tarde... embora haja vezes... =)Menito, Bagaço =)

Ivar C disse...

memyselfandi, eu acho que mesmo que seja tarde, vale a pena fingir que não. obrigado. :)

S* disse...

Hummmmm... realmente o facto de estar sozinhos faz-nos olhar para as outras pessoas com olhos mais... mais atentos.

S* disse...

Realmente, o facto de estarmos sozinhos faz com que olhemos para as outras pessoas com olhos mais... mais atentos.

Ivar C disse...

s*, faz sim... e de que maneira. :)

Fatyly disse...

era também a noção de que vinte anos com ela tinham sido um erro irrecuperável.
.............
algo que só quem passa por isso é que entende cada palavra que tão bem descreves e ...realmente depois da dor/vazio da perca fica-se com novas "formas de ver".

Hoje não devia ter lido, mas li e uma vez mais consegues dizer tanto em tão poucas palavras. Pôxa rapaz, toma lá um abraço e continua a maravilhar-me(nos)

Ivar C disse...

fatyly, obrigado. a sério. eu sou daqueles que acham que se deve sempre ler, mesmo que nos faça um bocadinho mal. :)

N.O.B.O.D.Y. disse...

Após uma separação/divórcio chega um momento de real constatação e aceitação do facto, e, para mim, é nessa altura que a nossa visão "acorda" para uma nova realidade, como se os nossos olhos se habituassem de novo à luz após algum tempo na escuridão...

E não considero o tempo passado numa relação falhada como "irrecuperável" mas sim como de aprendizagem, mesmo os momentos maus/péssimos serão sempre passíveis de ilações no nosso futuro.

Ivar C disse...

nobody, também não considero, à partida o tempo passado irrecuperável. isto é um exercício de ficção e por isso representa parcialmente a realidade. :)

Malena disse...

Não é fácil ter um olhar próprio quando se aprendeu a olhar a dois durante tanto tempo...
:)

Ivar C disse...

malena, é isso mesmo. uma boa forma de resumir a coisa. :)

Celeste disse...

Não achas possível um olhar próprio mesmo quando somos dois? Eu acho complicado mas às vezes é possível. O teu texto está, no entanto, carregado de razão!

Ivar C disse...

celeste, acho que este olhar é sempre próprio, tão próprio que a falta dele também o é. e é dessa falta de capacidade (ou de vontade) de olhar que eu estava a falar. agora, se mesmo tendo namorada se olha para outras mulheres? olha sim... :)

Celeste disse...

Bagaço, não tinha entrado por essa veia (a de olhar para as mulheres) estava a falar no facto de quando somos dois há a tendência de se olhar a dois e por vezes é difícil um olhar próprio. Que os homens olham para as mulheres com e sem namorada eu sei!

Ivar C disse...

celeste, então ainda bem. não era para entrar. :)