crónicas de engate (2)
o barbeiro
É quando vou ao barbeiro que costumo falar mais de mulheres. Não porque tenha muita vontade de dizer a um barrigudo que a gaja que acaba de passar lá fora é boa como o milho, mas porque a alternativa é falar de política. Eu até gosto de falar de política, só não o gosto de fazer com alguém que, para além de achar que devíamos expulsar todos os estrangeiros do país porque nos estão a roubar os empregos, me tem amarrado por uma bata numa cadeira e uma navalha aberta em cima do balcão.
É por isso que tento sempre sentar-me na cadeira mesmo à frente de um calendário de 1988 com uma mulher nua, cuja vagina já está queimada pela ponta de um cigarro e, em cuja parede, a humidade negra orna com ironia a escassez de tinta branca. Assim, sei que depois do barbeiro me dizer que aquela humidade parece a pelugem da prostituta que vive mesmo no andar de cima e que, segundo ele, é capaz de acordar um morto, a conversa fica quase só pelas suas mais profundas experiências e devaneios sexuais.
Uma vez garantiu-me que em jovem namorou uma mulher que lhe colocava o preservativo no pénis só com a boca, mas como se a resposta do meu bocejo ruidoso fosse um insulto, passou imediatamente aos seus conselhos sábios que, alguém como eu, devia saber enquanto era jovem e ainda tinha alguma força na verga: que se as mulheres têm as mamas grandes e caídas deve-se virá-las ao contrário, que se as mulheres têm o cabelo curto não se deve pôr a pila na boca delas pois podem morder, que se as mulheres têm as unhas compridas devem ficar sempre por baixo, etc, etc.
Foi precisamente a meio duma aula dessas que senti entrar uma mulher. Coisa estranha e nunca vista, numa loja que mais parecia a caverna dum urso acabado de sair da hibernação, e uma presa (eu) que não queria gastar mais do que cinco euros num corte de cabelo e, por isso, sujeitava-se àquela tortura psicológica da idade média. Não a consegui ver de imediato mas, pelo pingo de baba que me caiu na cabeça já com o cabelo curto, deduzi que devia ser atraente. A voz dela era calma, pelo menos pareceu-o ser quando avisou que queria cortar o cabelo à criança. A criança era um rapaz envergonhado que se sentara mesmo atrás de mim, por baixo do calendário de 1988, e que ouvia música num leitor portátil de mp3.
Foi a primeira vez que vi o reflexo da face do meu barbeiro, no espelho enferrujado, corar. Foi também a primeira vez que senti algum silêncio naquela sala suja. Ela sentara-se no sofá vermelho e coçado e, de vez em quando, virava as folhas duma revista qualquer. Ele preparava-se para iniciar uma conversa qualquer que me parecia ir ser de engate mas que custava a nascer-lhe dos lábios. Depois aproveitou o facto de eu dar um segundo bocejo para mostrar alguma força à desejada. Que eu era jovem e aparecia ali sempre com sono, disse ele. Que ele tinha mais de cinquenta anos mas continuava com energia, continuou enquanto a olhava pelo canto do olho.
Mais um pingo de baba na minha cabeça e a voz da mulher interrompeu aquele processo de humilhação: "energia, energia... oh! homem, cale-se mas é e despache-se. Esse jovem está cansado porque ainda tem que fazer à noite. E olhe que lá porque ontem à noite foi lá acima e não fez o serviço tem que me pagar na mesma". A mulher era a prostituta lá de cima, aquela que eu me habituara a imaginar com uma pelugem enorme.
As últimas três tesouradas foram mais nervosas e aleijaram-me. Depois levantei-me, paguei sem dar gorjeta e saí agradecendo com um sorriso aqueles minutos de paz à mulher. Era bonita.
13 comentários:
Magnifico Bagaco, mesmo muito bom :-)
Tenho a dizer-lhe que o amigo(permita-me que o tarte assim) escreve muito e bem.
Para mim, a melhor parte do texto é a última frase que escreve. "Era Bonita.", em cheio.
Os meus Parabéns.
ecila, obrigado pela presença e pela simpatia... :)
Pedro Pires da Rosa, pelo menos gosto de o fazer. obrigado. a sério. :)
Que bonito! Não me sai melhor adjectivo e acho que todos os outros se deviam envergonhar de existir. Um abraço!
Eugénia
Não faço ideia se esta é uma realidade que melhora a ficção ou uma ficcção de real qualidade, em todo o caso, há histórias que merecem mesmo ser contadas. Bom fim de semana. Um brinde à "data" do ponto 4!
Muito bom! :)
"Era bonita"...tras-me sossego e tira-me aquela ideia de que um homem que comer tudo que use saia...
tanto conselho, tanta sabedoria, e afinal, paga...como muitos! excelente!
está assim bestial, bagaço :) do best, muit'á frente.
adorei!
a mais recente fã do teu blogue
xana
Eugénia, eu envergonho-me de existir quando passo nos saldos do pagapouco. :)
vida hifi, um ponto 4 só para ti, então. :)
joaninha versus escaravelho, obrigado. :)
pieces of me (Luna), essa dos homens quererem comer tudo o que usa saia é definitivamente mentira. :)
toma lá fresquinho, nem mais. :)
ovo zero, gosto da palavra bestial. obrigado. :)
xana, bem vinda, então. :)
Ok, quanto à história do preservativo com a boca, se calhar ele viu este filme. RogerDodger
Aos barbeiros, primos directos dos taxistas, é sempre bom puxar pela língua, ouvir outros pontos de vista de uma geração já bastante afastada da nossa ajuda-nos a compreender a sociedade em que vivemos. Ok, já que temos que pagar é melhor aproveitar uns quantos minutos de diversão.
quack, ena... eu não vi... mas já estou a imaginar a Elizabeth Berkley... :)
Enviar um comentário