jura de sangue
A Clara não gostava do seu próprio corpo. Tinha as mamas pequenas, era sardenta e os seus cabelos frisados não obedeciam à lei da gravidade. Achava-se feia e falava muito pouco com os outros. Acho que por isso é que me tornei no melhor amigo dela. Corrijo, acho que por isso é que me tornei no único amigo dela. Na altura não havia telemóveis e quando eu lhe telefonava era sempre o pai dela que atendia. Eu perguntava se a Clara estava em casa e ele, sem sequer me dirigir a palavra, pousava o telefone e chamava-a sempre com a mesma frase enfadonha: "Clara! É o teu amigo".
Por aqueles dias a Clara era a minha companhia ideal. Por um lado porque era capaz de caminhar comigo quilómetros à deriva pela cidade, por outro porque eu não precisava de pensar se a Amava ou não. Isso precisamente porque ela não tinha mais ninguém e eu nunca sentia ameaçada uma eventual paixão entre nós. O Amor podia esperar...
Lembro-me de um dia frio em que adormecemos os dois nas dunas da praia, abraçados e vestidos, e que quando acordámos ficámos na mesma posição bastante mais tempo. Dali não podíamos ver o mar mas podíamos ouvi-lo, e parecia que estava a ralhar connosco por qualquer motivo que eu desconhecia. Foi com esse som por trás que ela me disse que achava que nunca nenhum homem se ia apaixonar por ela. "Eu gosto", respondi apertando-a com mais força. Não sei porquê mas não nos beijámos, embora isso me tenha passado pela cabeça, mas sei que ela sorriu e escondeu a cara no meu peito.
Aliás, ela escondia sempre a cara quando sorria, e era nesses momentos que mais me apetecia abraçá-la, embora nunca fizesse. Depois desse dia na praia, a única vez que a abracei foi quando ela me fez prometer que íamos ser sempre amigos e que, se alguma vez a vida nos separasse, nos voltaríamos a juntar quando fizéssemos quarenta anos. Escrevemos essa jura numa das páginas quadriculadas do caderno de matemática dela, cortámos o dedo polegar com um x-acto e assinámos com sangue. Eu ri-me da brincadeira, mas estava verdadeiramente feliz.
Foi pouco tempo depois que a vida nos separou. Telefonei-lhe como fazia habitualmente, o pai dela atendeu, pousou o telefone e disse: "Clara! É um amigo teu". Percebi imediatamente que deixara de forma abrupta de ser o único, mas mais grave ainda foi perceber que deixara de ser o primeiro. Ela não aceitou combinar nada comigo e disse, com um timbre na voz que para mim era novo, que me telefonava mais tarde. Esperei um dia, uma semana, um mês, um ano e nunca mais telefonou.
Este mês faço quarenta anos e, embora não tenha a intenção de cumprir a nossa jura de sangue, gostava que ela também se lembrasse de mim. Era só isso.
Por aqueles dias a Clara era a minha companhia ideal. Por um lado porque era capaz de caminhar comigo quilómetros à deriva pela cidade, por outro porque eu não precisava de pensar se a Amava ou não. Isso precisamente porque ela não tinha mais ninguém e eu nunca sentia ameaçada uma eventual paixão entre nós. O Amor podia esperar...
Lembro-me de um dia frio em que adormecemos os dois nas dunas da praia, abraçados e vestidos, e que quando acordámos ficámos na mesma posição bastante mais tempo. Dali não podíamos ver o mar mas podíamos ouvi-lo, e parecia que estava a ralhar connosco por qualquer motivo que eu desconhecia. Foi com esse som por trás que ela me disse que achava que nunca nenhum homem se ia apaixonar por ela. "Eu gosto", respondi apertando-a com mais força. Não sei porquê mas não nos beijámos, embora isso me tenha passado pela cabeça, mas sei que ela sorriu e escondeu a cara no meu peito.
Aliás, ela escondia sempre a cara quando sorria, e era nesses momentos que mais me apetecia abraçá-la, embora nunca fizesse. Depois desse dia na praia, a única vez que a abracei foi quando ela me fez prometer que íamos ser sempre amigos e que, se alguma vez a vida nos separasse, nos voltaríamos a juntar quando fizéssemos quarenta anos. Escrevemos essa jura numa das páginas quadriculadas do caderno de matemática dela, cortámos o dedo polegar com um x-acto e assinámos com sangue. Eu ri-me da brincadeira, mas estava verdadeiramente feliz.
Foi pouco tempo depois que a vida nos separou. Telefonei-lhe como fazia habitualmente, o pai dela atendeu, pousou o telefone e disse: "Clara! É um amigo teu". Percebi imediatamente que deixara de forma abrupta de ser o único, mas mais grave ainda foi perceber que deixara de ser o primeiro. Ela não aceitou combinar nada comigo e disse, com um timbre na voz que para mim era novo, que me telefonava mais tarde. Esperei um dia, uma semana, um mês, um ano e nunca mais telefonou.
Este mês faço quarenta anos e, embora não tenha a intenção de cumprir a nossa jura de sangue, gostava que ela também se lembrasse de mim. Era só isso.
44 comentários:
Eu cá para os meus botões, acho sinceramente que ela se lembra de ti... não pode ser de outra maneira..um amigo nunca se esquece passe o tempo que passar... agora se vai querer falar contigo sobre a vossa promessa...isso é outra coisa...mas que seria engraçado um contacto mesmo que simples...seria...
Fiquei triste...pode ser que sim...
Beijo
Lindo...mais do que bem escrito, sentido...
Um dia tive uma amizade assim...algo mais do que amizade que não chegou a algo tão superior como o Amor.
A vida separa-nos mas quando existem ligações assim, de alma, nunca se perdem para sempre... é sempre um até já, ali na esquina da vida...mesmo que seja só no pensamento.
Liga-lhe :)
Obviamente fartou-se de esperar pela tal beijoca. E levou a mal que lhe dissesses que "gostavas" dela quando ela falava em "apaixonar". Pensou que preferia que estivesses calado.
Viva! Que história fenomenal. Numa época em que a sociedade se ajoelha perante as trevas da devassidão, estas tuas pequenas crónicas sobre a verdadeira amizade sao uma lufada de ar fresco, que, na verdade contribuem muito mais para a produtividade diária nacional do que se possa imaginar! (a mim, lembram-me muitos dos meus acontecimentos de adolescente, e em grande parte das vezes, faz-me sonhar e até encarar melhor os dias de árduo labor que se avizinham!)
Tens aqui um blog fantástico!
É triste de facto quando o tempo tem essa influência nas pessoas... Deixamos de ser amigos de quem uma vez realmente amávamos e adorávamos passar horas com essa pessoa... É triste que hoje em dia a gente passe pela rua, e que realmente reconhece as pessoas que outra hora foram nossas amigas, e de repente sentimos um murro no estômago pois percebemos que de nós nada se lembram... E é verdadeiramente triste quando de facto as pessoas lembram-se de nós mas simplesmente não querem nada connosco porque devem achar que fomos um estorvo na vida delas. É triste e eu compreendo perfeitamente como te sentes... Também já deixei percorrer esse tempo todo e parece que quanto mais passa menor é a dor de se ser esquecido...*
http://realdreams-liliana.blogspot.com/
Ohhhhhhh... eu também gostava que ela se lembrasse e que efectivamente houvesse esse encontro, para saber que rumo tomou a vida de cada um.
Mais que não seja, porque as verdadeiras amizades, os amores, ainda que platónicos, são eternos...
:o)))***
São coisas que nunca se esquecem!
Espero que ela se lembre e tente entrar em contacto contigo.
Beijinho
Oh... querido Bagaço... este teu texto comoveu-me de forma especial. Também eu tive um amigo assim. A diferença era que nunca nos tocávamos nem abraçavamos. Éramos como pólos iguais, dizia ele, que nunca se tocam. E sabíamos que, se nos apaixonássemos, seria perfeito. Jurámos, sem escrever e sem sangue, que se não casássemos até aos 40, casávamos um com o outro... E mesmo que fóssemos casados, mas infelizes, seríamos amantes... Hoje ele tem uma namorada. A nossa amizade deteriorou-se e já não falamos. Só nos cumprimentamos secamente quando passamos um pelo outro, o que acontece muito raramente...
No peito dos dinossauros, também batem corações.
Excelente história! Já me aconteceu algo semelhante ;)
Hmm, a Clara devia ir falar contigo. Para honrar um compromisso e uma amizade.
MAs isto sou eu a falar.
Nunca atinei com essas "juras COM SANGUE" já tão velhas...mas bastante perigosas...
Quem sabe se ela ñão cumprirará a jura:)
eu sou eu, gostava que sim, que ela se lembrasse de mim. :)
isis, não é para ficar triste. :)
sendyourlove, é isso mesmo. :)
nessa, mesmo que quisesse não sabia como. :)
wiwi, lol! obviamente que não. :)
vitor, obrigado. :)
lili, mas olha que estou tudo menos triste. estou feliz, até, e espero que ela esteja também. :)
pearl, talvez a encontre por aí um dia destes. :)
cindy, basta lembrar-se. :)
briseis, isso é bonito mas não é triste. as amizades têm o seu tempo... as paixões também. :)
homem vulgar, yep. :)
alexandre, :)
ejsantos, se se lembrar de mim já é bom, e na verdade já chega. :)
fatyly, lol! uma brincadeira adolescente. :)
Uma história de criança muito comovente... e quem sabe num outro lado qualquer ela se lembre do mesmo.
Bj
moi, obrigado. bj :)
mas isto aconteceu mesmo? acho que vou deixar de ler os teus textos porque enquanto os leio apetece-me chorar. por outro lado acho-os belissimos:)
Daniela
Daniela, isto não é para chorar. muito pelo contrário. :)
Acho que ela deixou de te falar porque foste tu que fizeste com que ela tivesse um "único" e verdadeiro amigo, e foste muito importante para ela. Talvez agora ela pense nisso.
Um dia ainda tens notícias dela.
Um belo texto com muito sentimento, simplesmente adorei. :)
Uma das coisas mais bonitas que li nos últimos tempos.
Obrigada.
Estou de casamento marcado com um amigo assim, se aos 35 estivermos solteiros. Ainda faltam 14. Veremos. :)
Bagaço, é a primeira vez q comento um post, apesar de ler o blog há meses. A tua história é lindíssima e gostava de te dizer q, às vezes, há finais felizes nessas histórias. Hoje namoro com aquele que foi o meu melhor amigo e grande paixão (secreta) de adolescência, após anos sem contacto :) Tem uma boa semana! *
"etiquetas:crónica de engate"??? :)
Acho que as promessas são sempre para cumprir. Nem que apenas lhe ligues só a dizer "estou apenas a cumprir uma promessa. Espero que estejas bem."
:)
suspiros, só quero que ela se lembre de mim como eu me lembro dela, de facto. :)
cris, eu é que agradeço. :)
joana r, ena... :)
carolina, mas eu também namoro com a minha paixão da adolescência, que tive a sorte de encontrar graças a este blog. :)
estórias, a etiqueta é para ser considerada num âmbito alargado. :)
(desculpa, mas acho que ela não está nem aí...
um beijo grande)
nunca chego a perceber se o que escreves aqui (mais as conversas e as historias, como esta) é real ou fruto de uma mente brilhante. mas neste texto nao pude deixar de notar um lado realmente humano, e adorei, adorei o quanto isto é ou foi verdadeiro...
Até me vieram lágrimas aos olhos, quero uma Clara para mim, juro que não a deixo escapar, o Amor não pode esperar, nunca =]
sem-se-ver, lol. nem ela nem eu. só gostava mesmo que ela se lembrasse... :)
mary, obrigado. :)
cota, :)
Devias tentar encontrá-la!
beijinho
nan... tu lembraste-te. ela não. foi isso que quis dizer (sorry). outro beijo.
É uma linda história de amizade :) Pode ser que em segredo ela tenha vindo a seguir o teu blog :)
bjs
chorei.
redonda, nem tenho como. :)
sem-se-ver, não sei se ela se lembra ou não... :)
strawchoc, bem... isso foi o que me aconteceu com a minha namorada. :)
nana cunha, :)
so sweet....
wine, wine and more wine.., :)
Tão engraçado! Sabes que tb fiz uma jura com um amigo aos nossos quarenta anos? Também nunca mais o vi...tento encontra-lo no facebook, mas nada :)
helena, eu nem tento... gostava de encontrar por acaso. :)
Que delícia, adorei a história!
De certeza que se lembra, uma rapariga nunca esquece ;)
margarita, obrigado. :)
"era sardenta e os seus cabelos frisados não obedeciam à lei da gravidade."
Cabe perfeitamente no saco das mulheres mais bonitas... era só isso.
anónimo, e era bem. :)
fiquei triste.
hibiscus, não era para isso. :)
Enviar um comentário