4.01.2011

o cadáver

Ainda não lhe fez o enterro, mas já percebeu que o Amor quando morre é um cadáver pesado. Decompõe-se muito lentamente e anda-se com ele às costas para todo o lado, com o mesmo ar de um enlouquecido agente funerário. É com esse ar que ele está agora, enquanto espera por uma sopa morna na fila de um restaurante num shopping qualquer.

As filas para os restaurantes que fazem sopas são difíceis para um homem a quem o Amor morreu recentemente. Há sempre muitas mulheres povoando-as, porque são elas (e eles quando estão tristes) que mais facilmente se satisfazem apenas com uma sopa, e entre elas há sempre uma por quem um homem se podia apaixonar. Podia, porque enquanto se carrega o cadáver do Amor não se consegue nem pode. 
Neste caso seria a ruiva que está agora a ser atendida e que pede um caldo verde, uma gelatina vermelha e um sumo natural. Não será, porventura, a mais bonita, mas é aquela que ele gostava de poder abraçar neste momento. Não sabe porquê, claro, que os ingredientes de um abraço são como os duma receita secreta. Não os deciframos, apenas lhes conhecemos o sabor. Agora que pensa nisso, a responsabilidade de um abraço é a mesma responsabilidade do Amor. A do tempo que passa, portanto. Às vezes gosta-se, outras vezes não, mas é sempre um carimbo que fica na nossa vida.
A ruiva reparou nele. Pelo menos é a terceira vez que os seus olhos encontram os dele e se escondem imediatamente na tigela de sopa já vazia, exactamente da mesma forma que uma avestruz esconde a cabeça e deixa o corpo à vista. É esse corpo que ele queria abraçar agora e cuja vontade, sem ele perceber, o fez em segundos sentar o cadáver que transporta na cadeira ao lado e tirar-lhe a pulsação. Ainda não bate nem dá sinais de vida, mas quase. Talvez amanhã, e sorri. Ela também.

15 comentários:

Helena disse...

"Os ingredientes do abraço..."Gostei!

Ivar C disse...

helena, obrigado. :)

Briseis disse...

E assim se começa uma linda história, com uma flia para as sopas e um Amor malcheiroso em estado de composição... O McGyver fazia uma bomba atómica com uma pastilha elástica e um arame... Tu és o McGyver das histórias de Amor! =)

Ivar C disse...

briseis, ei! tenho saudades do MAcGyver. A sério... :)

Rana disse...

Ler os teus posts é um prazer, mas também se tornou um vício. Todos os dias a postar não deve ser fácil mas, para ti, não parece! A tua Raquel inspira-te, e nós absorvemos estes textos, como se fossem reais . Alguns serão.

Malena disse...

Devia cremar o corpo para atirar as cinzas ao vento e desfazer-se do peso. Assim, talvez o abraço viesse mais cedo! :)

H. Santos disse...

Ámen Bother... Definitivamente, és um artista...

Só não estou de pé a aplaudir, porque 1º decidi escrever, mas já o vou fazer lol

Grande texto, há quem ganhe bom dinheiro a escrever coisas piores xD

Ivar C disse...

rana, obrigado... que simpatia. :)

malena, que boa ideia... às vezes não é mas é fácil. :)

cota, obrigado... és um fixe. :)

XS disse...

Numa esplanada com finos e tremoços o texto sería outro! Em vez de um sorriso, uma gargalhada...

Ivar C disse...

xs, :)

Fatyly disse...

Além de subscrever o comentário de Rana, consegues que se perceba um pouco mais dos homens:) e agora vou dizer-te algo que aconteceu e eu a pensar que o gajo era maluco, já que lidei com imensos (coitados e que me perdoem):

Há bem pouco tempo, numa situação dessas um fulano novo como eu né? se fosse puto levava um chapadão porque já chega os filhos que tenho loll olhou, triste como a noite, e como não havia mesmo mais lugar algum, pediu para se sentar o que acedi, comi, comeu e eu de olho na minha carteira (mulheres são precavidas né) acabei, levantei-me e o sujeito disse apenas:
ele: posso dar-lhe um abraço?
eu: tem armas? (lol)
ele: nada disso (num sorriso mais aberto)
eu: então venha lá esse abraço porque já sorriu
e dei-lhe
ele: obrigado minha senhora, acredite que foi com imenso respeito porque há meses que a solidão me corrói!
eu: também se não fosse por respeito, já tinha a marca na cara. Deixe-se disso e sorria para a vida que irá encontrar o caminho certo porque está vivo. Tchau e muita força .

Obrigado por este momentão, que adorei!

Unknown disse...

Sr. Bagaço, chegada aqui de fresco, estou encantada e enamorada com coisas boas se lêem por aqui, coisas lindamente escritas, mas o melhor de tudo é esta honestidade de vida que se respira a cada palavra!

Voltarei sempre!

Ivar C disse...

fatyly, que história interessante. :)

miss keatch, obrigado pela simpatia e bem vinda. :)

sophie disse...

"os ingredientes de um abraço são como os duma receita secreta. Não os deciframos, apenas lhes conhecemos o sabor. Agora que pensa nisso, a responsabilidade de um abraço é a mesma responsabilidade do Amor. A do tempo que passa, portanto."

Adorei...

Não compreendo porque dizes não compreender as mulheres...
Eu sempre que aqui venho (agora não tanto quanto gostaria,confesso)compreendo sempre um pouco mais do Homem... Mulheres e homens... :)

Ivar C disse...

sophie, obrigado. a incompreensão é um dos passos da dialéctica. :)