12.16.2010

pensamentos catatónicos (225)

Ela sentou-se à minha frente no comboio enquanto eu lia "O Jogo do Anjo", de Carlos Ruiz Zafón, e tocou-me no ombro. Cumprimentei-a e ela começou a falar, como se fosse natural eu fechar o livro para a ouvir. Olhei-a discretamente por cima das páginas que me deliciavam e percebi que sim, para ela era normal eu sair do mundo onde estava para entrar no dela. Por uma questão de simpatia, mas também por hipocrisia, foi o que fiz fechando o livro que guardei entre as minhas mãos.
Não a conheço muito bem. É uma mulher com olhar de lince que de vez em quando, mesmo muito de vez em quando, encontro por aí à noite e a quem pergunto se está tudo bem, sem no entanto estar interessado na resposta. Acho que a conheci só porque numa noite qualquer ela estava com alguém que eu conhecia melhor, e sempre tive a certeza que ela me respondia também sem dar a mínima importância à minha pergunta. Nunca tivemos uma conversa que nos interessasse, a mim ou a ela, de facto.
Acho que as pessoas podem passar anos sem se conhecerem mesmo, disse ela desafiando todo esse nosso passado inconsequente e ainda mais a minha aparente dificuldade em fechar o livro. Referes-te a ti e a mim? Perguntei. Assentiu com os olhos. Depois abriu a carteira e tirou ela um livro, marcado numa página mais ou menos a meio, que começou a ler sem me ligar mais. Ela, que me tinha arrancado à força d' O Jogo do Anjo, deixava-me agora a pairar num limbo enquanto virava as suas próprias páginas. Acho que o que ela me quis dizer é que esse limbo que eu sentia sempre existiu entre nós.
Não voltei à obra do Carlos Ruiz Zafón até ao fim da viagem. Não sei por que motivo há pessoas a quem, desde o primeiro segundo, dedicamos toda a nossa atenção, e há outras de quem nos desviamos como se fossem chuva. Sei que, apesar de tudo, às vezes a chuva molha-nos.

16 comentários:

Poetic Girl disse...

Dá que pensar, quantos de nós não terão sentido o mesmo em certa altura da vida? bjs

Ivar C disse...

poetic girl, sim... acho que já todos sentimos isto. :)

Anónimo disse...

"sei que , apesar de tudo, ás vezes a chuva molha-nos."

Estou aqui há alguns minutos a tentar encontrar letras para poder te explicar como senti esta última frase do teu post, simplesmente soberba.

Não tendo a tua destreza literária, apenas te posso dizer que a frase final deste post da vida ao mesmo texto, sem ela o post não teria o mesmo peso.

Beijo
P.S.

Ivar C disse...

anónima, obrigado por me compreenderes. :)

Anónimo disse...

Bagaço... so true, so true.

Fatyly disse...

pois molha, oh se molha e é com cada banhoca, desculpa...banhada!

Gostei imenso e que te dizer mais? julgo que já gastei os adjectivos!

H. Santos disse...

já estive dos dois lados...

acredito que existe sempre um egoísmo associado e esse tipo de relações. sentimos que devemos ter a atenção de quem nos interessa e ficamos chateados quando não acontece, mas não hesitamos em fazer o mesmo a outrem (menos interessante ao nossos olhos) porque não sentimos que temos realmente de o fazer... é complicado xD

Anónimo disse...

Concordo inteiramente ali com o anónimo, é realmente na última frase que encontro a catatonia do pensamento.
CR

Pearl disse...

Realmente, às vezes passamos anos por uma pessoa sem a "vermos", e de repente ela faz-se ver por algum motivo.
Acho que não é possível conhecermos todos aqueles com quem nos cruzamos, se nem a nós mesmos temos tempo de conhecer...
Quanto à última frase: a chuva molha sim...
;o)))***

Ivar C disse...

anónimo, :)

fatyly, obrigado. gosto de te sentir aí. :)

mr. Z, concordo com a tua análise. todos nós somos egoístas. mais ainda quando não o percebemos. :)

cr, obrigado. :)

pearl, o nosso egoísmo faz-se pagar. :)

Malena disse...

E, no entanto, com esses tipo de chuva, logo ficamos secos... :)

Ivar C disse...

malena, pois... depende, acho eu. :)

Maria disse...

gosto tanto quando leio algo assim e sorrio :) tipo: ah pois é!

Ivar C disse...

maria, obrigado. :)

Alexandra disse...

Já sigo o teu blog há uns anos (uns três, salvo erro) e apesar de raramente comentar, adoro a tua escrita. Sinto que um comentário meu pouco iria acrescentar.. A forma como captas instantâneos da vida e da psique das pessoas é fabulosa.
Tenho neste momento uma pessoa assim na minha vida. Hostiliza-me, invade o meu espaço apenas para me fazer sentir indesejada ou desadequada. Isto sem qualquer motivo aparente, porque não é de todo forçado a interagir comigo. Lembra-me os putos de 6 anos que quando gostam de uma rapariga lhe batem e puxam os cabelos e fazem trinta por uma linha..
Acho que há pessoas que precisam de sentir-se o centro das atenções, que não suportam sentir que são indiferentes a terceiros. E por vezes, a única forma de quebrar essa casca de indiferença é sendo invasivo, hostil ou simplesmente irritante. Claro que o remate final é sempre a indiferença devolvida sob a forma de rejeição: vês, agora sou eu que não te ligo nenhuma.

Ivar C disse...

alexandra, percebo bem isso... :)