12.29.2010

onde começa o sexo

Lembra-se do céu. Aliás, do que se lembra sempre quando não se lembra de mais nada é do céu. Talvez pela sua omnipresença nas suas vidas. Não apenas na dele. Nas suas, ou seja, na dele e na dela. Que ele e Helena só se amaram sem tecto.
Lembra-se do céu ser uma aguarela pálida como as maçãs do rosto dela, e de talvez ter sido essa vergonha das cores faciais a encorajá-lo a tentar beijá-la pela primeira vez. Avançou com os lábios e ela recusou, empurrando-o para trás com o seu braço delicado. Depois manteve-se em silêncio muito tempo, com a mão dela a segurar a dele, amuada e tão quieta quanto a sua decepção.
O que é que estás a pensar? Perguntou ela como se pudesse pescar-lhe o encolhido pensamento que se afundava num oceano de emoções imperceptíveis. E também por isso se lembra do céu, onde escondeu os olhos enquanto limpava uma lágrima invasiva e abanava os ombros para encobrir a falta de vontade em responder.
Agora está ali, no mesmo pedaço de mundo a que milhões de anos de evolução do nosso planeta decidiram decorar com areia e mar. Por um momento acreditou que essa decoração foi feita propositadamente para esse momento em que tentou beijar Helena há muito tempo atrás, e que agora aquele espaço não é mais do que uma espécie de casa abandonada às suas recordações de infância. Tanto que apenas o céu continua lá, um pouco mais negro e violento, como se as nuvens também se lembrassem.
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O amor nunca é só amor, pensa. É o mais forte combate à solidão e uma dádiva, porque nele abdicamos sempre um pouco de nós. Só que Mário nunca abdicou dele, depois dessa tentativa frustrada de beijar Helena em criança. Até ontem, passados quase quarenta anos, e talvez por isso tenha ido ali contar o sucedido. Não tinha mais ninguém para o fazer a não ser àquele lugar.

Há muitos anos que apanham o mesmo autocarro para voltar do emprego a casa. Ele sai sempre uma paragem antes dela. Há muitos anos que o fazem calados, aniquilando a espaços o silêncio apenas para falar do tempo ou duma notícia trivial qualquer. Há muitos anos que se olham pelo canto do olho sem um saber do desejo do outro. Há muitos anos menos ontem, quando sem perceberem muito bem porquê a mão dela escorregou para a dele e manteve-se ali, segurando-a como se segura a cria dum pardal. Ele deixou-se ir e não saiu na paragem habitual. Saiu apenas na seguinte, onde a tentou beijar avançando com os lábios sobre os dela e lhes conheceu o sabor. Depois caminharam até casa e fizeram amor. Tem mais de quarenta anos, e aprendeu agora que o sexo começa nas mãos que se dão.

7 comentários:

crise disse...

Muito Bonito .

Bom Post

Fatyly disse...

É muito dificil alguém tirar-me o pio...mas fiquei nesse estado e a pensar como por vezes complicamos tanto a vida, quando tudo começa (não apenas o sexo) "nas mãos que se dão".

Eh pá simplesmente belo e real.

Um enorme abraço de agradecimento por este momento de leitura e lá vai mais um para o arquivo de uma das tuas fãs: a minha mãe:)

Ivar C disse...

crise, obrigado. :)

fatyly, ena! dá um beijo meu à tua mãe. obrigado. :)

Alexandra disse...

Muito bonito:) e verdadeiro..

Ivar C disse...

alexandra, obrigado. :)

H. Santos disse...

só Deus e eu sabemos a viajem que este post me fez dar... amigo, escreve um livro, eu vou compra-lo.

obrigado pelo momento, bom ano ;)

Ivar C disse...

mr.z, estou a escrever mais um. falta-me quem o edite. :)