11.29.2010

tempestade

Lembro-me dela como de açúcar, que a sua presença me adoçava os dias amargos da solidão. E é assim que penso neles, nesses dias em que contava uma a uma as gotas de chuva que iam morrendo num voo suicida sobre as janelas da marquise. Dias amargos entre dois mundos: o mundo interior da minha casa e o mundo exterior da minha casa. Da imensidão do mundo exterior recebia às vezes a visita dela, e esses momentos eram os únicos em que eu não contava as gotas de chuva na janela. Ficava a ver os seus dedos finos a abraçar uma chávena de chá acabado de fazer para se aquecerem e a responder às suas perguntas. As nossas conversas eram sempre assim, com ela a perguntar e eu a responder preguiçosamente.
A minha preguiça, no entanto, não era uma fuga à sua presença. Antes pelo contrário, era uma forma de a prolongar. Esticava as palavras e temperava-as com um ou outro suspiro para render mais. Chegámos a estar tardes inteiras assim, com ela a perguntar e eu a responder, ela a perguntar e eu a responder, ela a perguntar e eu a responder. Fiquei a saber que podemos conhecer um pessoa não pelas respostas que dá mas sim pelas perguntas que faz. Tanto, que numa dessas tardes me apaixonei.
Quando estamos apaixonados queremos fazer amor, e quando queremos fazer amor as palavras deixam de o ser de facto. As nossas, para mim, passaram a ser um empecilho entre a marquise e a cama, e fui ganhando ciúmes até da chávena de chá onde ela aquecia as mãos. Depois, como o amor é sempre uma tempestade, deixei também de conseguir contar as gotas de chuva que se multiplicavam na janela quando ela não estava. Acho que foi num desses dias que ela não veio pela primeira vez. Talvez tenha tido medo da minha paixão, não sei. Nunca mais a vi.
Só um destes dias é que tornei a vê-la, por acaso, no formigueiro que era um dos centros comerciais da cidade. Convidei-a para tomar café. Ainda aquece as mãos frias nas chávenas quentes e acho que pela primeira vez foi ela a responder-me. "Lembras-te de mim?", perguntei-lhe como quem tem noção de que, fazendo parte de um mundo menor, possa ter sido esquecido. "Ia perguntar-te o mesmo", disse ela.

16 comentários:

Anónimo disse...

"Quando estamos apaixonados queremos fazer amor"
Será sempre assim?
CR

Salsa disse...

Recordar é viver!

Me,myself & I! disse...

Gosto tanto quando fazes estes textinhos...

Ivar C disse...

cr, será quase sempre. às vezes nem é preciso estar apaixonado. :)

salsa, :)

memyselfandi, obrigado.:)

Anónimo disse...

Sim, claro que às vezes não é preciso estar apaixonado, mas o que questiono é se não haverá paixões tão etéreas que nem se pensa na relação física?
CR

Ivar C disse...

CR, haverá, com certeza, formas e intensidades diferentes de pensar na relação física. :)

Anónimo disse...

Escreve mais :)
Inês

Ivar C disse...

inês, obrigado. :)

Fatyly disse...

Coisas que só valorizamos quando as perdemos e tu és uma caixinha de surpresas e nunca deixes de escrever!
Gostei imenso!

Look by me disse...

Bela história, bj.

Ivar C disse...

fatyly, obrigado, :)

look by me, obrigado. :)

Anónimo disse...

Ola querido "Bagaco"
Tenho andado um bocadinho ausente do teu cantinho, mas nem por isso o esqueci.
Adoro as tuas letras.
Beijo e um abraco apertadinho. :)
P.S.

Ivar C disse...

anónima, obrigado. beijo. :)

Malena disse...

Talvez ele também fosse como açucar para ela e começasse a recear a diabetes...
Adorei! :))

Ivar C disse...

malena, lol. obrigado. :)

H. Santos disse...

possa bagaceira, mais um assim e matas um homem... so me trazes recordações

eu ando a fugir de fazer a mma pergunta que ele fez...

devia dar para controlar o quanto curtimos das pessoas, só para as coisas não serem smp tão difíceis xD