11.23.2010

só sexo?

Ele decidiu fingir que adora o timbre da voz dela, mas não adora. Na verdade às vezes até o irrita, principalmente quando atinge um leque de frequências mais agudas que o faz lembrar uma mulher a ralhar com uma criança. Fê-lo de forma consciente, para não perder aquilo de que realmente gosta nela: o sexo. Ela decidiu fingir que gosta das piadas dele durante as refeições, mas não adora. Na verdade normalmente nem as percebe muito bem, já que são quase sempre sobre futebol, e do pouco que percebe até as acha estúpidas. Fê-lo de forma consciente, para não perder aquilo de que realmente gosta nele: o sexo.
Andam assim há anos, desde o deslumbramento da primeira noite na cama. A ela nunca lhe tinham feito um minete tão certo, e certo é o adjectivo que o qualifica realmente, pela pontaria e pela subtileza. Tanto, que a fez esquecer-se da língua de gato do seu ex-marido. A ele nunca lhe tinham feito um felatio tão profundo, e profundo é o adjectivo que o qualifica realmente, pela forma como ele se lembra dos lábios dela a beijarem-lhe os pêlos púbicos. Tanto, que o fez esquecer-se das constantes recusas da ex-namorada em fazer sexo oral. Desde então que estão juntos numa relação que depende exclusivamente do sexo. Quando este acabar, acaba também a relação. Algumas relações são assim, outras não. Ambos sabem disso.
É por ambos saberem disso que hoje aceitaram a mentira um do outro. Ele telefonou-lhe do escritório a meio da tarde, disse que tinha que trabalhar durante toda a noite e não podia ir dormir a casa. Ela fingiu acreditar e desejou-lhe boa sorte. Um “boa sorte” honesto até, já que sabia perfeitamente que ele ia sair para o engate. Depois de desligar desejou boa sorte a si mesma também.
Sair para o engate quando não se precisa de sexo é diferente de sair para o engate quando não se quer outra coisa. Ele percebeu isso na primeira tentativa, enquanto se oferecia para pagar, ao balcão de um botequim de esquina, uma bebida a uma desconhecida que se apressou a encostar-lhe as mamas na barriga e apertar-lhe o falo com os seus dedos de aranha. Ia perguntar se ele tinha alguma coisa no bolso ou se estava contente por a ver, mas ele não estava nada contente por vê-la. Infelizmente também não tinha nada no bolso. Pagou-lhe a bebida e foi-se embora fazer aquilo que pensara fazer por uma vez na vida com uma mulher: passear na marginal e falar. E fê-lo, só que falando consigo mesmo.
Sair para o engate quando não se precisa de sexo é diferente de sair para o engate quando não se quer outra coisa. Ela percebeu isso na primeira tentativa, enquanto apreciava os lábios dum homem a remexer um palito entre dentes com nódoas verdes de esparregado. Do peito saiam-lhe alguns pêlos arduamente penteados e da boca alguma palavras arduamente soletradas. Tens uns pára-choques fixes, cuspiu ele. Ela acabou por fugir aproveitando uma suposta ida à casa de banho. Queria, por uma vez, dar a mão a um homem e dividir o prazer de ver montras com ele, mas acabou por dar as suas próprias mãos uma à outra enquanto encostava a cabeça ao vidro duma loja abandonada.
Talvez por isso continuem os dois a dividir a vida. Ele fingindo que gosta da voz dela, ela fingindo que percebe as piadas dele. Sempre com muito sexo que, afinal, talvez não seja só isso.

19 comentários:

Fatyly disse...

Complicado comentar porque ao ler e reler senti a maior e mais sofredora das solidões que é a que sentimos...quando acompanhados!

Ivar C disse...

fatyly, a solidão é tramada, sim. às vezes vem exactamente com as pessoas que nos acompanham. :)

Anónimo disse...

Pois, já vivi uma história bem parecida com esta, com a agravante de ele ter mau hálito :s
CR

Maria disse...

Ai...ora bem, há uns meses, dava na Comercial de manhã uma música de um grupo português ou cantor ou isso...que já me fartei de procurar e não encontro...mas era qualquer coisa como, embora diferentes eles eram iguais, e que se juntavam no mesmo divã,sem rumo e (acrecento eu) nem repararam que ambos já tinham um rumo.

Às vezes, não raras, esquecemo-nos de ver as pessoas que temos ao lado. E que por mais disparatado que pareça, essas, é que fazem sentido.

Alonguei-me e até me perdi...

Ivar C disse...

cr, :)

maria, esquecemo-nos muitas vezes, sim... :)

Salsa disse...

comodidade!
aquilo que escreveste para mim é comodidade, habituação e falta de vontade de voltar a dar um rumo à vida que se leva.
quantas relações não são assim. já não levam a lado nenhum mas no entanto são mantidas pelos seus intervenientes.

Ana disse...

Brilhante... MESMO!
Vou, com mto agrado, colocar este relato do dia-a-dia no meu blog, se me permitir.
Obrigada

Ivar C disse...

salsa, ou é isso ou gostar mais de sexo do que doutra coisa qualquer. :)

ana, até agradeço. obrigado. :)

Cisne disse...

Bom texto. Gosto do conceito geral.


Cisne.

Stiletto disse...

Muito bom, como sempre. Escreves que é uma delícia por ser tão sentido e fazer tanto sentido. Devias agarrar nestas crónicas e publicá-las. São muito boas. :-)

Ivar C disse...

cisne, obrigado. :)

stiletto, obrigado. há-de chegar o dia. :)

Stiletto disse...

Quando assim for avisa. Quero comprar! :-)

Ivar C disse...

stiletto, lol. :)

H. Santos disse...

oh bagaço, meu caro...

não é que já tive uma relação assim!!? infelizmente não tive coragem de acabar com a relação (o sexo era realmente bom), mas felizmente acabou ela (estou curado finalmente)...

o mau de ter uma relação assim é que apesar de estar com alguém, falta-te sempre qq coisa...

há um cantor que diz num verso o seguinte : "não é amor esse amor que fazes selvaticamente"
quess what!!? aprendi a respeitar esse verso...

porque a selvajaria é bom, mas o amor é muito mais que isso xD


gosto mmo deste blogue, continua forte irmão xD

Ivar C disse...

mrZ, cuidado! há coisas de que nunca nos curamos totalmente. abraço. :)

H. Santos disse...

até pode ser que não, but the show must go on

Ivar C disse...

mrz, lol. :)

Anónimo disse...

quase que caía uma lágrima..:)
mj

Ivar C disse...

mj, :)