11.17.2010

mataram o pião

Lembro-me de ter que pôr as duas mãos em cima do velho balcão de madeira da loja e içar-me para conseguir ver os vários piões que o senhor Chico punha à minha disposição. Depois pegava neles deixando-me cair no chão para os poder observar ao detalhe. Fazia isto um a um antes de escolher o pião ideal. À noite, o meu avô observava-o também e aprovava ou não a minha decisão.
E se cedo a minha vida com as mulheres começou a falhar (a Helena, a Teresa e a Márcia nunca me ligaram nenhuma durante o ciclo preparatório), não foi por causa da minha falta de investimento pessoal nessa primeira formar de afirmar a masculinidade. Os rapazes tinham piões, as raparigas não. E numa aula de Ciências da Natureza sobre transferências de energia em que era preciso escolher um aluno para demonstrar como se transferia a energia para o pião, fui eu o escolhido com o voto quase unânime de todas elas. Por uma vez na vida todas as miúdas, ou quase todas (raios Márcia, eras sempre tu), escolheram-me a mim para alguma coisa.
No recreio jogava-se ao Racha. Fazia-se um círculo no chão e tinha que se conseguir que o pião começasse dentro desse círculo e acabasse fora, caso contrário ficava onde estava para os outros jogadores tentarem parti-lo. Normalmente partiam-no mesmo. Depois vinham as lágrimas e um pontapé ou outro de vingança. Era um jogo viril e uma aprendizagem para a vida. Não se podia falhar.
Agora mataram o pião. Ontem os meus enteados apareceram em casa excitados com um brinquedo novo, uma coisa de plástico e metal chamada beyblade. É uma maquineta às cores que faz um pião girar sem hipótese de erro. Aquilo gira sempre, basta puxar uma espécie de cordel e já está. Depois os vários beyblades vão girando uns contra os outros até o último parar. Mais nada. Nunca se partem nem exigem o aperfeiçoamento da técnica para enrolar o cordel. É o fim do pião. É o fim de tudo.
O governo devia proibir imediatamente a importação do beyblade. Qualquer dia vemos os velhotes no parque a jogar à malha ou à petanca com peças de plástico e um contador electrónico a pilhas. Não me fodam, há coisas que não deviam mudar.

19 comentários:

maria disse...

Velho do Restelo!

Ivar C disse...

maria, velho até pode ser, do restelo é que não. :)

Salsa disse...

Velho do moliceiro.
Verdade certas coisas não deviam mudar, mas mudam só temos que manter a nossa memória viva e tentar transmitir aos outros as nossas experiências.

Ivar C disse...

salsa, do moliceiro está melhor. lol. :)

STP disse...

Bagaço:

Hoje provavelmente os peões seriam proibidos, porque têm o bico relativamente afiado, e aquilo na cabeça de algum puto poderia matar.
Não interessa se uma pedra da rua também pode, ou um apagador de quadros...
O que eles puderem proibir, proibem :)

Ivar C disse...

stp, pois... e o que seria do jogo da navalha ou da cavilha... :)

Anónimo disse...

Só para dizer que apesar de ser rapariga me fartei de jogar ao racha e era bem respeitadinha pelos adversários :)
Tinha uns daqueles mais pequenos com bico de prego e depois tinha os monstros de bico grande em forma de cone.

CR

Ivar C disse...

cr, lol... ainda bem. esses chamavam-se monas, não era? :)

Anónimo disse...

Ah ah, o meu irmão nem acreditou que eu lhe estava a ligar apenas para lhe perguntar se ele se lembrava do nome; mas lembrou-se claro! Era um craque também.
Na minha terra aos grandes chamávamos "Bóios" :)

CR

Ivar C disse...

cr, onde é que era a tua terra? nunca ouvi falar em bóios... :)

Anónimo disse...

No concelho de Vinhais (Bragança)

CR

Ivar C disse...

cr, ah! até calculei que fosse no sul... mas não... é mesmo numa zona que até conheço assim assim. :)

Anónimo disse...

conhecer assim assim (ainda por cima sem o habitual gesto da mão a acompanhar a expressão) não conta para nada :)

CR

Cristina disse...

Ivar,
é um prazer descobrir o teu blog. (AMC)
Descubro que o faço tarde e que tenho 1637 conversas para ler (duas já estão).
Mas discordo quando dizes que o pião era jogo viril...coisa de gajos. Parti muitos e tive outros tantos. Pensando bem...também fiz chorar alguns putos.

Uma beijoca enorme (mas muito respeitosa Sra. Corceiro),

Cristina

Ivar C disse...

cr, não é Vinhais, é vila flor e carrazeda de ansiães. :)

cristina, a parte do viril é irónica. :)

Fatyly disse...

Mudam e a culpa é de quem? de quem dá isso aos putos em vez do verdadeiro pião que ainda há muitos à venda e até muito mais baratos, porque ensinar...dá trabalho e nada como ir nos fins de semana e tempos livres...ao shopping em vez de um jardim, praia ou até na rua em frente à porta.

E futebol de caricas? e os berlindes? e à malha?...

"Não me fodam"...há coisas que mudam por culpa...fico-me por aqui:)

Ivar C disse...

fatyly, exacto. :)

Buu disse...

Acabei de descobrir o teu blog e mal li isto tive de vir comentar (a)
Ora, eu tenho 18 anos (uma miudinha, sei bem) e conheço essa coisa do beyblade há pelo menos 10 anos desde que haviam uns desenhos animados que se chamavam assim e que tinham uns miúdos que faziam competições disso.
Portanto, não é propriamente recente :D

Ivar C disse...

buu, pois... parece que houve agora um renascer do beyblades. :)