11.10.2010

esferográficas

Faço parte do grupo de pessoas que não se lembra de ver a tinta duma esferográfica chegar ao fim. Provavelmente nunca vi. Perco-as, 'emprestado-as' ou simplesmente estrago-lhes o bico ao escrever uma palavra mais nervosa, mas de todas as esferográficas que comprei nunca nenhuma morreu nas minhas mãos. Pior, comprando-as regularmente, sou aquele que nunca tem uma à mão quando é mesmo preciso.
Às vezes penso nisso e tenho pena. Gostava de pelo menos uma vez na vida fazer uma homenagem decente a quem me dá tanto (e este 'quem' refere-se, de facto, às esferográficas). É que numa esferográfica já vêm as palavras todas que nós queremos escrever. Basta-nos tirar a tampa, chamá-las no nosso pensamento, e dispô-las numa folha de papel pela ordem que queremos.
Engana-se quem acha que falar é o mesmo que escrever, e que por isso a nossa língua e os nossos lábios podem ser uma alternativa fiável a uma caneta e um pedaço de papel. Não é. Aliás, o Amor é a primeira prova disso. Sou capaz de jurar que todos aqueles que confessam o seu Amor pela primeira vez na vida o fazem através da escrita e não através da fala. A explicação é simples: a folha de papel na qual escrevemos é sempre compreensiva. Os outros, aqueles a quem falamos, não são. Principalmente quando falamos de amor.
Há uns dias, enquanto folheava alguns cadernos do liceu, encontrei uma folha de papel que tem uma das primeiras confissões de Amor que fiz. Li-a e reli-a várias vezes, como se aquele pedaço de papel fosse uma vida qualquer adormecida. E acordei-me. Lembro-me tão bem de o escrever numa aula de Matemática enquanto fingia ouvir a professora.

Passaste agora do outro lado da janela. Passaste e na paisagem ficaram os cabos de alta tensão que parecem a pauta duma música qualquer que fala de ti. Que te canta. Neles, com o céu ao fundo, os pardais são as notas soltas que dançam.

Há bocado sentei-me num café e rasguei uma folha dum caderno que tenho na mala do computador. Queria reescrever este pequeno pedaço da minha adolescência. Torná-lo mais adulto, talvez. Depois procurei em todos os bolsos do casaco uma caneta que comprei há uns dias num supermercado e nada, já não a tinha. Provavelmente deixei-a ontem num restaurante onde a usei para escrever uma nota num cartão de apresentação que entreguei a um conhecido. Fiquei por isso novamente a ler e reler aquela minha confissão fossilizada num papelinho há mais de vinte anos. Reli-a tantas vezes que acabei por falar alto sem querer. Talvez as pessoas que tomavam café na mesa ao lado tenham ouvido. Sei que pela primeira vez na minha vida fiquei feliz por não ter uma esferográfica à mão. Há, de facto, confissões de Amor que se fazem a uma folha de papel, mas só devemos fazê-las uma vez. À segunda, nem que seja mais de vinte anos depois, devemos dizê-las. Ou cantá-las até. Sei lá. E eu estou a dizê-la, sem a reescrever, à Raquel.

28 comentários:

Anónimo disse...

vou primeiro dizer o habitual, nunca comentei neste blog mas leio-o há muito tempo. só queria que alguém escrevesse um texto destes a pensar em mim e vou fingir que foi escrito a pensar em mim. a raquel que me perdoe.

Maria disse...

E eu que não consigo dizer...
escrevo só...e muitas vezes na areia da praia... :)

Ivar C disse...

maria, :)

L u i s P e s t a n a disse...

Escreves mesmo bem, porra...

Ivar C disse...

pestana, obrigado. as palavras já vêm nas esferográficas. é só pô-las na ordem que queremos... :)

Mariana disse...

Um dia vou comprar uma caneta como a tua e as palavras sairão na ordem certa.

redonda disse...

Bem, por acaso, nesse domínio, do início, eu sou mais de falar do que de escrever...agora a ler iso fiquei com a dúvida sobre se será porque não seria capaz de escrever uma primeira carta como a que está nesse papel. E então dizer "gosto de ti" fica mais forte do que o escrever. Não sei. Sei que plagiando o Luís Pestana em cima, mas só na 1ª parte porque já gastei a escrita de palavras mais fortes esta semana "escreves mesmo bem".
E pensar que só vinha aqui (porque estou cheia de sono) para dizer que fiquei muito feliz e convencida quando abri o meu blog e te vi como meu seguidor. Obrigada :)
um beijinho
Gábi

Sofia disse...

Olá, eu sou das que leva uma esferográfica até ao fim. Até à última. E que fico a olhar para a mesma quando a tinta acaba. Como quem pergunta: "Então agora que viveste tanto é que decides passar o testemunho?". De igual modo, só escrevo com Bics. Sou fiel, o que hei-de eu fazer?
Por último, gostaria de te dizer que tens um miminho no meu blog (Texto: Recomendo porque sim)
Beijinhos,Sofia

Urban Cat disse...

Já passei pela experiência de ver morrer uma caneta nas minhas mãos e por falta de tinta. Levo-as sempre até ao fim. A que tenho na minha frente está quase pronta para ir desta para melhor.

Embora trabalhe com um computador todo o dia não consigo colocar de parte a caneta e o seu risco azul...assim vou sempre "riscando" um pedaço de papel.

Gostei do teu canto, vou voltar.

Ivar C disse...

mariana, :)

redonda, obrigado.:)

sofia, obrigado. pela disponibilidade e pela simpatia. :)

marta, obrigado. eu gostava de conseguir... :)

L u i s P e s t a n a disse...

"[...]as palavras já vêm nas esferográficas. é só pô-las na ordem que queremos"

Se nunca acabas uma esferográfica quer dizer que nunca acabas um pensamento?

Ivar C disse...

pestana, tenho dificuldades em acabar pensamentos, sim. Aliás, acho que escrever pode ser uma maneira de ajudar a acabar um. :)

EJSantos disse...

Poetico. Nostalgico.
Gostei.

EJSantos disse...

É bom ler o que escreves.

EJSantos disse...

É bom ler o que escreves.

Ivar C disse...

ejsantos, obrigado. é bom haver quem o consiga ler. :)

Pearl disse...

Sou das que acaba a tinta da caneta... e quantas e quantas já acabei!
Nada de palavras tão bonitas quanto as que escreves, mas também encontrei há uns dias num livro, algumas palavras que escrevi há uns 10 anos, e sorri, nostálgica perante o milagre dos sentimentos...
Eles, vêm, vão, mudam de cor e de contornos, mas a essência, independentemente das palavras escolhidas, permanece!
Obrigada por nos presenteares com tantas e tão belas palavras!
;o)))***

Ivar C disse...

pearl, obrigado pela tua presença. :)

Anónimo disse...

Entendes agora quando dizia :Quando se ama, ou se ama para sempre, ou nunca se amou.
Lindo, o texto.
Beijo x
P.S.

Fatyly disse...

A explicação é simples: a folha de papel na qual escrevemos é sempre compreensiva. Os outros, aqueles a quem falamos, não são. Principalmente quando falamos de amor.
..............
Certissimo, mas ainda bem que "estás a dizer à Raquel" a excepção que existe sempre.

Parabéns a ti que como escritor consegues deslumbrar-me e outro à Raquel por te fazer feliz e tu a ela!

Doce Melancolia disse...

Eu adoro esferográfica, tenho uma pequena colecção delas (que ainda escrevem e também das que já tiveram o seu fim).
E este pequeno texto é uma inspiração! Inspira-nos a pegar numa esferográfica e escrever essas tais palavras que não conseguimos dizer em voz alta.

Obrigada pela inspiração! :)

Ivar C disse...

anónima, nesta perspectiva, entendo sim. :)

fatyly, obrigado. :)

doce melancolia, então pega, sim. faz bem... e obrigado pela presença. :)

Celeste disse...

eu acabo os lápis e as esferográficas todas, todinhas e declarações nunca as escrevo, digo-as!

Ivar C disse...

celeste, :)

C disse...

:)
Absolutamente verdadeiro... Verdadeiramente tocante. Como (talvez) só a palavra escrita pode ser.

Ivar C disse...

c, :)

DT disse...

Hoje estava a escrever um post-it para deixar a um colega e acabou-se a tinta de uma esferográfica! automaticamente me veio à cabeça este post! :)

Ivar C disse...

dumb, :)