é só mais uma noite de novembro.
É só mais uma noite de Novembro. A lâmpada apagada da sala permite que a dos candeeiros públicos da rua rasguem, numa das paredes, as aguarelas negras da noite. São rasgos intermitentes e um deles beija-lhe o pescoço. É um beijo de luz tão suave que ela nem acorda. Talvez o beijo do príncipe à Branca de Neve tenha sido um beijo de luz parecido, penso. Depois afogo o pensamento em mais um gole de uísque. Não presta. O pensamento é que não presta, o uísque é bom. Ela também, e se a beijasse agora tinha que ser com saliva. Talvez a luz se apagasse como a chama duma vela. Talvez ficasse a conhecer mais um pouco sobre ela. Talvez depois a pintasse nua numa tela. Ela, ela, ela, ela.
É só mais uma noite de novembro, pá. O telefone dela vibra no chão, mesmo ao pé das botas que ainda suam. E suam bem, cheiram bem, tudo bem. É o nome dum gajo qualquer que aparece no ecrã. Desligo-o. Espero que para sempre. Enfio-o numa bota. É verdade, lembro-me: ela tem os pés descalços. Massajo-os devagar. Muito devagar. Tão devagar que ela geme sem acordar. Eu também. Já estava acordado, aliás. A intermitência do candeeiro público acabou, talvez por vergonha. Agora é a luz da lua que vem espreitar e destapa-lhe a camisola. Só um bocadinho, de forma a ver-se o umbigo. Lambo-o. Ela geme outra vez, mas desta vez agarra-me a cabeça com as duas mãos e empurra-a. Deve ser assim que os anjos nos empurram para o céu quando morremos, acho. Deixamos a vida toda para trás.
É só mais uma noite de novembro. Ela ainda dorme. Ou dormita, pelo menos. As calças mal despidas não a deixam abrir totalmente as pernas. Tem que ser com os dedos. Levanto a cabeça. O telemóvel torna a vibrar. Ela também e eu também. Devagar. Depois vem-se, solta um suspiro como se cuspisse um balão gástrico. Os anjos perdem as asas. Deixam-me cair. O telemóvel cala-se. Espero que para sempre.
É só mais uma noite de novembro. É possível ter saudades de quem não se conhece?
15 comentários:
Obrigado por este texto fantástico.
O que aconteceu ontem à crónica?
clap clap clap!!!!!
grande abraço!
Muito bom, mesmo.
Sem dúvida merecedor de uma nova etiqueta.
Parabéns.
O texto está excelente. Parabéns! Adorei! :)
é ....é possível....
"É possível ter saudades de quem não se conhece?"
É.
anónimo, não sei o que acontecu porque ninguém do Diário de Aveiro se dignou a dizer-me o que quer que seja. Eu nem estava em Aveiro não pude comprar o jornal. Só hoje, através de emails, é que percebi que não foi publicada. Obrigado pelas palavras. :)
vitor, grande abraço. :)
flávio, lol... obrigado. :)
joana, obrigado também... :)
patrícia, se é possível ainda bem... não estou maluco. :)
sylvia, ;)
'Ela geme outra vez, mas desta vez agarra-me a cabeça com as duas mãos e empurra-a. Deve ser assim que os anjos nos empurram para o céu quando morremos, acho. Deixamos a vida toda para trás.'
Está lindo.
simplesmente muito bom!
jardineiro e sungod, obrigado. :)
Que dizer? EXCELENTEEEEEEEEEEE!!!
obrigado, fatyly... :)
A minha vénia por tão bonito texto...
obrigado, xana :)
Mto bom texto! Adorei.
Ass: a caboverdiana...
Enviar um comentário