se tiver de ser
Se tiver de ser talvez trabalhe até mais tarde. Talvez não vá a casa e durma no escritório. De manhã, quando acordar com uma dor nas costas, já moldadas por uma cadeira petrificada, lavo a cara na casa de banho dum café, afrouxo um pouco o nó da gravata, e telefono-te só para tocar a tua voz. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser vou ao supermercado comprar fiambre e pão do dia, mais uma cerveja de lata morna, e é esse o meu almoço. Depois tomo café na máquina que obriga as pessoas a passar de lado no corredor. A puta, obriga-nos a passar de lado e depois cobra-nos trinta cêntimos por um café merdoso. Sempre é mais barato. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser esqueço-te. Passo cinco dias e cinco noites no lugar do morto do automóvel onde fodemos pela primeira vez, onde te fiz um minete enquanto tinhas os pés descalços colados ao pára-brisas. Espero aí... cinco dias e cinco noites. No lugar do morto, como se esperasse a morte sabendo que ela não vem, mesmo que esteja ali ao lado. Cansada. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser mudo para o outro lado da rua sempre que te vir a aproximar de mim. Mastigo uma chiclete sem sabor, continuo a dar passos numa manhã sem sabor, tomo um café sem sabor mais lá à frente, e passo a merda do resto do dia sem sabor. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser um judeu prostitui a alma ao cabrão dum nazi, um palestiniano prostitui a alma ao cabrão dum judeu, um ateu prostitui a alma ao cabrão dum palestiniano. Se tiver de ser um comunista prostitui a alma ao cabrão do Joseph McCarty, um democrata prostitui a alma ao cabrão do Estaline, um desempregado prostitui a alma ao cabrão do Bush. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser choro, quando o Beira-Mar perde, quando tu vais embora e desligas o telefone, quando não és um dos passageiros do comboio sobrepovoado onde transpiro solidão todas as manhãs. Se tiver de ser. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser enterro a minha vida num crédito por telefone, e mesmo assim prometo sorrir quando chegar a casa todos os fins de tarde e tu estiveres desistente na cadeira da cozinha. Talvez fumando um cigarro interminável cujas cinzas são as tuas únicas palavras. Só se tiver de ser.
Se tiver de ser afogo-me em uísque, e prometo não esbracejar nem pedir ajuda. Talvez o faça fora d'época, quando não há salva-vidas nem bandeiras às cores para nos avisar que nos podemos afogar. Só se tiver de ser.
Se me afogar e quiseres que eu volte, eu tento. A sério que tento. Mas só se tiver de ser.
10 comentários:
pq teve de ser,
gosto de si.
E se não tiver de ser, amigo Bagaco?
E se não tiver de ser?
homem com tomates que tem um blog com tomates merece o prémio.
nomeei-o, claro.
querido
tu não deixes de escrever nunca
só se tiver de ser
:)
sem-se-ver, é recíproco. obrigado pelo frasco de ketchup... ;)
borboleta e luciferina, o "se não tiver de ser" nunca existe... é o que eu não gosto no verbo ser. :)
alexandre, abraço e obrigado.
jp, querida, deixo quando emigrar para o Butão. Só aí... ;)
fico muito mais descansada, querido
;)
se tiver de ser afoga-te nos dramas; nos reais e nos outros criados pela tua cabeça de poeta... para depois descarregares aqui a raiva em palavras que encantam a gente.
se tiver de ser fige que é dor a tua dor e dá-nos a outra, para que sintamos nas palavras aquela que não sabemos sentir senão ao ler-te.
jp, só penso em descansar-te, querida. ;)
elipse, assim emocionas-me pá... ;)
És Genial Bagaçinho :)
Beijo
Maria
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