Saturno tem anéis
enquanto não acabo o meu próximo livro, que ainda nem sei se consigo editar, fica aqui um texto sobre divórcios que escrevi no único livro que publiquei até hoje, e que escrevi ainda era casado.
As pilhas esgotaram-se. Desligou-se o ruído que, por frágeis ondas electromagnéticas, ligavam Saturno ao mundo. Ao de lá de fora, não ao seu, onde uma senhora gorda acaba de apanhar no meio da rua as cuecas do marido. Tinham caído do estendal com a força do vento, e por estarem mal lavadas ainda têm uma nódoa de merda em transparência. Saturno não reparou nisso porque nunca espreita pela janela, e a sua face distante ainda se concentra no agora silencioso rádio.
Logo à noite o marido da gorda vai chegar bêbado a casa, e quando reparar na nódoa vai espancar a mulher. Depois fazem as pazes entre cascatas de lágrimas, umas falsas, outras nem por isso, terminando num acto sexual mecânico. Depois de limpo o esperma num banho rápido ele vai tornar a sair, e as cuecas sujas desse dia vão ficar à espera que as lágrimas da esposa sequem. Só então as poderá lavar.
Saturno lembra-se de em pequenina brincar na rua com o filho deles. Foi, aliás, com ele, que teve a primeira brincadeira proibida. Tinham doze anos os dois, e ela já usava soutien. Nessa noite o pai fechou-a no quarto depois de lhe bater, enquanto o seu amigo foi levado às putas como prémio de ter chegado ao estado de Homem com H grande. Acabou também por levar uma surra, das mesmas mãos que acabaram de foder a vizinha depois de lhe bater, porque ao entrar no bordel começou a chorar de medo.
Daqui a bocado ele vai voltar, cantando no solitário negrume da avenida, e como um cão fiel a mulher estará à sua espera na janela, sujando de baba e lágrimas um vidro tristonho. Saturno não vai espreitar mas sabe-o, porque também ela espera alguém que vem com ele. É o seu filho com o tal H grande. Saturno tem anéis...
in "Numa Avenida de Merda", Ivar Corceiro. Edições Mortas. 2005
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