9.27.2011

o pedinte

Vejo-o a andar por ali a arrastar os pés nuns sapatos esburacados e dois números acima do pé, de mão estendida a pedir que lhe permitam viver mais algum tempo, seja com uma moeda para uma sopa ou o resto dum cigarro, e não é bem a miséria dele que me faz confusão. É a solidão, que nunca o vi acompanhado por ninguém.
Um dia ganhei coragem e convidei-o para almoçar.

- Sente-se aí, se quiser, e faça-me companhia durante a refeição. 


E ele olhou para o empregado como que a pedir autorização. Naquele café os pedintes podem entrar, pedir e sair. Só não podem sentar-se à mesa. Era o que faltava, o senhor Fernando ir servir aquele a quem às vezes dá uma moeda. Uma vez até me confidenciou que já serviu o presidente da República. Não este de agora mas o anterior, e que ele até lhe disse obrigado antes de sair.
E eu perguntei pelos pratos do dia.

- A feijoada está boa. - respondeu abanando o lóbulo da orelha com um orgulho singular.
- Duas doses, então.


O pedinte sentou-se e o senhor Fernando abanou os ombros como que derrotado pelas evidências. Enchi-lhe o copo de vinho enquanto os seus olhos se enchiam de brilho, e talvez por isso tenha sido sido ele o primeiro a falar.

- É casado? Perguntou.
- Oficialmente sou, na prática não. Meti esta semana os papéis do divórcio.
- Logo vi. Um homem casado não convida um pedinte para almoçar.

Deu um gole no vinho que mais me pareceu ser um mergulho no mar. Aaaaaahhhh! E beijou o próprio ar estalando os lábios. Vou-lhe dar um conselho, disse. E depois quis centrar os seus olhos nos meus.

- Foram as mulheres que me puseram assim, nesta condição de miserável. Se se vai ver livre duma, e se ainda gosta uma réstia de si, nunca mais se meta noutra.


Provei a feijoada, que realmente estava boa, e dei também um gole no vinho, que não estava assim tão bom. Não que me apetecesse falar sobre mulheres, que na verdade era o último tema que eu poria em cima da mesa dada a minha condição de recém separado, mas fiquei curioso e perguntei-lhe, tentando dar o ar mais descontraído do mundo, se ele nunca se sentia sozinho.

- Nunca me senti tão sozinho como durante o meu casamento, porque o pior é ter alguém ao nosso lado todos os dias que não quer saber de nós.


E como eu não reagia ele insistiu.

- Está a perceber?


Abanei afirmativamente a cabeça, mantendo propositadamente o silêncio. Com o meu divórcio mudei os meus hábitos e acabei por nunca mais voltar àquele café. Até hoje de manhã, em que o vi a entrar e sair com os mesmos movimentos de sempre. Acho que talvez seja isso, desistirmos de nos apaixonar: aceitar que os dias sejam todos iguais até ao dia da nossa morte, seja a pedir uma moeda num café como um prolongamento da vida, seja doutra forma qualquer. Apeteceu-me correr atrás dele e perguntar-lhe se se lembrava de mim, explicar-lhe que entretanto já me apaixonei outra vez e que vale a pena tentar de novo. Mas não o fiz.

17 comentários:

Anónimo disse...

amiguinho, o outro também não é responsavél pela nossa alegria. somos nós!

não se busca no outro aquilo que não temos ou não podemos oferecer!

diverte-te!!

Confuskos disse...

Muito bom! :)

Adorei esta história!

Um abraço!

Ana (Ballet de Palavras) disse...

Sabe?! Entendo que o pedinte é aquele que estende a mão, mas, o pobre é aquele que o observa em vão.

Semelhantemente, considero que não é relevante a causa que o propicia mas a urgente relevância no abandono dessa condição. (pedinte).

Sua história emocionou-me. Relembrou-me um acontecimento real, descrito no meu Ballet de Palavras (Conscientes) datado de 29.10.2010 cujo nome nomeei “A solidariedade e a Caridade”. Oferto-lhe o link: http://balletdepalavras.blogspot.com/2010/10/solidariedade-e-caridade.html no pressuposto que aprecie a sua leitura.

Ana

Salsa disse...

Na minha umilde opinião devias ter ido falar com ele.
E o meu bem haja pois naquele dia que o chamas te a almoçar contigo conseguiste mudar e dar esperança na vida a quem já tinha perdido tudo. Na minha umilde opinião devias ter ido falar com ele.
E o meu bem haja pois naquele dia que o chamas te a almoçar contigo conseguiste mudar e dar esperança na vida a quem já tinha perdido tudo.

EJSantos disse...

Ena Pá. O que às vezes acontece a uma pessoa (homem ou mulher) que os deixa "amputados" na alma?
EJSantos

AC disse...

Vale sempre a pena não desistir dos nossos sonhos, e acreditar que podemos sempre ser felizes.
Somos sempre o resultado de tudo aquilo que deixamos que a vida faça connosco, e só somos coitadinhos se persistirmos nisso....como o pedinte:)

Anónimo disse...

Pobres mulheres! Sempre a levarem culpa pelo aborrecimento dos homens perante a vida; por sua estupidez, por sua ignorância e até por sua miséria.

Ivar C disse...

anónimo, :)

confuskos, obrigado. um abraço. :)

ana (Ballet de Palavras), bonita história. a solidariedade é-me simpática. a caridade não... :)

salsa, devia... ou não. por trás do que fazemos ou deixamos de fazer há um feeling momentâneo. :)

ejsantos, é essa A pergunta. não sei a resposta. :)

ac, concordo com isso. :)

anónimo, às vezes levam, sim. mas não é sempre. :)

Olga disse...

Pelo menos ficou com o estômago aconchegado já que a alma continua faminta.

Mike disse...

Por vezes apenas desistimos.
É como alguém que se suicida... Apenas desiste de viver. Outros de amar...
É a vida...

Ivar C disse...

olga, se calhar sente-se bem assim. nunca se sabe... :)

mike, e é legitimo... :)

Celeste disse...

Que história comovente :)
Quando vejo um mendigo, fico pensando em sua história de vida: quem é essa pessoa? Ela tinha um trabalho ou uma profissão? Tem família? O que aconteceu para que ela se tornasse mendigo ou mendiga? Será ela mais feliz que muita gente que tem tudo e mais um pouco?

Mistérios do dia-a-dia!

Beijo

Ivar C disse...

celeste, penso mais ou menos o mesmo... beijo. :)

Carmo disse...

Adorei este post, tem alma...

Ivar C disse...

carmo, obrigado. :)

Fatyly disse...

Conheci vários(as) sem abrigo e com histórias impressionantes e digo-te que pelo menos 5 foi por opção e ainda hoje nenhuma instituição (houve várias) os conseguiram tirar das ruas de Lisboa.
Um, na altura com cinquenta e tal anos era pai de um colega meu que bem sofria com a situação e para mais sendo filho único. Via-o todos os dias, não pedia, limitava-se a olhar a multidão a sair do comboio, um dia convidei-o para tomar o pequeno almoço e aceitou. Com uma cultura invejável, tomava banho nos balneários públicos e comia a sopa do Sidónio e dormia no Rossio. Quando lhe toquei...mas no que me conta, onde fica a família? Sabe menina, tenho um filho, uma nora e dois netos de ouro, nunca tive problemas com eles, mas esta liberdade de anos ninguém me vai tirar excepto a morte! A minha casa é a rua e não quero nada material e a reforma que recebo fica inteirinha na mão do meu filho. Mas o sofrimento que causa aos seus? Que se curem...

Há uma frase tua que bateu fundo de tão verdadeira que é:

- Nunca me senti tão sozinho como durante o meu casamento, porque o pior é ter alguém ao nosso lado todos os dias que não quer saber de nós.

Ivar C disse...

fatyly, já conheci um pedinte exactamente com essa noção de liberdade. é incrível... e tenho-lhes um respeitinho. :)