7.04.2009

sento-me numa das cadeiras da cozinha e aninho a cabeça nas mãos que se abrem como uma taça

Encho duas vezes um copo com água da torneira que deito num tacho. Corto dois dentes de alho e acrescento algum, pouco, sal. Espero que a água ferva. Por estar doente não comi nada o dia inteiro e há pouco, quando subia as escadas do meu prédio, senti as pernas tremerem ligeiramente. Decidi comer arroz. Sento-me numa das cadeiras da cozinha e aninho a cabeça nas mãos que se abrem como uma taça.
É estranho estar sozinho em casa quando se está doente. Lembro-me sempre de ser criança e a minha mãe me levar um chá de limão à cama enquanto me media a temperatura com um termómetro de mercúrio. Mais tarde era a minha companheira quem fazia isso e eu a ela. E eu sentia-me bem na doença. Acho que a solidão que sentimos depende muito das nossas recordações.
A tampa do tacho dança com o movimento da água a ferver. Levanto-me com esforço e encho o mesmo copo com o arroz que depois ponho a cozer. Alguns grãos ficam presos na humidade do fundo do copo e por isso estico o dedo para os tirar. É um gesto simples mas que assim, doente, faço também com esforço. Sento-me numa das cadeiras da cozinha e aninho a cabeça nas mãos que se abrem como uma taça.
É estranho. As relações também são assim, quando estão doentes tudo o que se faz é com esforço. Um beijo, uma conversa, um jantar ou um simples passeio. Depois há a noite que espreita silenciosa pela janela, que é sempre muito mais silenciosa e muito mais noite quando estamos sozinhos. Acho que a solidão que sentimos depende muito do silêncio nocturno.
A tampa do tacho dança de novo. Levanto-me com esforço e desligo o fogão. Enquanto passo todos os grãos para um prato azul bebé o telemóvel toca. Tenho uma mensagem da minha companheira. Sorrio e respondo-lhe numa só palavra. Afinal não vou comer sozinho. Acho que a solidão que sentimos depende muito das pessoas que gostam de nós. Estejam elas onde estiverem.

20 comentários:

Marta P. disse...

Uma sms no telemovel, ou uma festa na cabeça... o que importa é a lembrança e a presença, mesmo quando se está longe.: D
As melhoras!!!

Ivar C disse...

marta, verdade. obrigado. :)

Maria Papoila disse...

Percebo essa solidão, em que tudo parece um esforço até o gesto mais simples e banal, uma solidão que se sente mesmo quando estamos rodeados de gente. Ainda bem que tens alguem que te tire a solidão :). Mais uma vez, as melhoras.

Joana Neto disse...

:) Sim, também entendo que a solidão que sentimos (ou não) depende muito das pessoas que gostam de nós. E das recordações. As minhas também incluem o termómetro de mercúrio e o chá na cama daí que gostei particularmente do post. Melhoras ;)

entremares disse...

Cinzento claro como quase todos os burros, aquele burro não era excepção. Tinha o pelo claro, despenteado, uns grandes olhos castanhos e duas enormes orelhas, claro está. Ou não fosse ele um burro.
Mas este burro tinha ainda uma outra coisa, e essa sim, diferente, porque nem todos os burros a tinham. E o que era, o que era ?
Este burro estava apaixonado.
Enquanto roía umas ervas macias, junto ao lago, não tirava os olhos de cima do objecto do seu desejo, que, do outro lado das águas, agitava a cauda de mansinho, fingindo enxotar moscas invisíveis.
Ela, a burra dos seus desejos, tinha o pelo castanho claro, reluzente, uns olhos profundos e um queixo miudinho. Nunca vira mastigar ervas com tanta delicadeza como a sua amada. Nunca levantava a voz, e quando zurrava, até aos pássaros do campo a acompanhavam na sua melodia.
A natureza dava-lhe forças que ele nem suspeitava ter.
Ergueu o pescoço e gritou para ela, o mais alto que conseguiu.
- Vem ter comigo. Eu quero-te.
Assim, sem mais nem menos.
Ela levantou delicadamente a cabeça, piscou os olhos duas vezes daquele jeito que só ela sabia piscar, e sorriu-lhe.
- Eu também te quero. Vem tu ter comigo.
Claro que o burro não foi. E claro que a burra também não iria, afinal eles eram os dois burros e os burros são teimosos, aliás, são teimosos como burros.
Claro que também não se lembrariam de contornar a lagoa, mas isso já é uma outra história.
Neste momento, o burro precisava urgentemente de descobrir uma solução.
Pensou, pensou, coçou as orelhas e quando se sentia quase pronto para desistir, teve uma ideia:
- Já sei – gritou ele – já sei, já sei, já sei, oh como sou inteligente…
Ela enviou-lhe o mais terno dos seus sorrisos.
- Eu vou nadar até ao centro da lagoa…. E tu fazes a mesma coisa… assim podemos encontrar-nos no meio e seremos os dois felizes para sempre…
Ela, como qualquer burra que se preze, hesitou.
- Não sei… vou molhar-me, posso sujar as patas…
- Eu quero-te. – E zurrou o mais gentilmente que conseguiu.
Ela hesitou mais um pouco, mas finalmente cedeu.
Encaminharam-se os dois para a lagoa, olhos nos olhos, inebriados de felicidade.
Primeiro uma pata, depois a outra, até aos joelhos, aí vão eles… a água subindo, junto ao pescoço.
- Meu amor, meu amor… - zurrava ele – já falta pouco, já falta tão pouco…
Mais uns passos, e a água a subir, já passava do pescoço, chegava-lhes ao focinho.
O burro lembrou-se então de que se estavam a esquecer de qualquer coisa.
- Meu amor, meu amor … esqueci-me de te dizer… mas eu não sei nadar…
Ela sorriu-lhe embevecida, já quase com o focinho a tocar no dele.
- Eu tinha vergonha de te confessar, meu amor … eu também não sei…
Em conjunto, ainda zurraram uma última vez, enquanto os seus focinhos se tocavam de mansinho.

( Pronto. A intenção foi só alegrar esse dia... )

Aida Lemos disse...

A solidão dói mais quando estamos doentes. Camuflamo-la quando nada mais nos dói que ela. As melhoras. AL

Padme Amidala disse...

Como te compreendo... Ter alguém nos momentos menos bons...

Agora imagina, ao fazer o jantar espetar uma faca na mão e estar sozinha em casa com 2 crianças...

A solidão é danada... E logo a sentimos mais apertada quando estamos em baixo...

As melhoras :-)

Ivar C disse...

maria papoila, obrigado. já estou a melhorar. :)

joana, obrigado... ao termómetros de mercúrios são um must da nossa geração. :)

entremares, ena. obrigado. :)

aida lemos, é assim, sim. obrigado. :)

padme amidala, é bem verdade... é como se nos pressionasse propositadamente. obrigado... :)

bia disse...

mt bonito... são estas pessoas que não nos deixam sentir sós que fazem com que a nossa vida tenha significado e valha a pena... as melhoras!! ;)

Olga disse...

O melhor remédio para a dor é saber que há alguém que gosta de nós. :)

IFI_productos_ficticios disse...

Boas sou há muito frequentador aqui do espaço e gosto muito, espero poder contar com a tua presença no meu, e que aceites o desafio que lá deixei..segues-te á closet...

Abraço, espero que estejas melhor..

Anónimo disse...

As melhoras, Bagaço.
(Que de facto parecem sempre mais rápidas, quando estamos acompanhados...)
Um beijo
Ana

Closet disse...

não sei se a solidão depende do silêncio nocturno, ou de outro silêncio qualquer...mas é um facto que as relações adoecem e o silêncio torna-se um barulho ensurdecedor para os nossos corpos. Espero que melhores ;)

Ivar C disse...

bia, são sim. obrigado. :)

olga, nem mais... obrigado.

IFI_productos_ficticios, obrigado. vou passar lá. :)

missanguita, obrigado. :)

Ana, obrigado. :)

closet, obrigado. de facto acho que a relação silêncio/solidão é dialéctica. :)

Bichana disse...

Bom post...
Espero que estejas melhor!

Ivar C disse...

bichana, já estou... obrigado. :)

redonda disse...

Ainda bem

Ivar C disse...

redonda, :)

Ventania disse...

... e muito boas.

Ivar C disse...

ventania, obrigado outra vez. :)