6.30.2009

crónicas de engate (8)

fantasma

Alguns raios de Sol espreitaram pela persiana e vieram deitar-se na cama dela, assim, sem sequer ousarem tapar-se com os lençóis empurrados para o chão pela fragilidade dos seus pés. Tal como ela, devem ter dormido sós e agora aproveitam o conforto da sua nudez. São como um fantasma quente e, a propósito, talvez seja a primeira vez que sente a luz aninhar-se no seu corpo.

Lembra-se que ontem entrou em casa com álcool a mais e felicidade a menos. Lembra-se que, quando fez algum barulho a rodar a chave na fechadura obstinada, sentiu o vizinho a espreitar pelo óculo da porta e lhe estendeu uma das mãos com o dedo do meio esticado. Depois o corpo cansado obrigou-a a dirigir-se directamente para a cama onde se despiu já deitada, expulsando com violência a roupa que a aprisionava. Aliás, foi também assim que empurrou os lençóis.

Talvez por essa roupa ter sido a única testemunha do fim de um amor, mais um, que acabou entre copos no balcão de um bar de que não sabe o nome. Sabe só que ele se despediu dela deixando-lhe cinco uísques pagos, dois bebidos e três por beber, e que se foi embora levando tudo o que nele interessava: o cheiro, o sexo e os efémeros abraços de todas as manhãs.

Os pais, que numa espécie de censura imediata ao seu anúncio de divórcio já a tinham avisado que não é fácil ser mulher divorciada e com filhos, têm parte da culpa da violência que ainda respira dentro da sua aparente serenidade. Enquanto o pai lhe dizia que nenhum homem ajuizado quer uma mulher assim, a mãe concordava com a cabeça abanando-a afirmativamente em silêncio. Ela calou-se e disse-lhes adeus baixinho, mas só o fez para evitar fazer-lhes o mesmo gesto que fez agora ao vizinho.

O suposto melhor amigo, que numa espécie de aprovação imediata ao seu anúncio de divórcio já a tinha avisado que é melhor estar sozinha do que mal acompanhada, também tem parte da culpa. Ela telefonou-lhe no primeiro dia em que se sentiu sozinha e pediu-lhe para passar lá em casa. Explicou-lhe que não podia sair por causa dos filhos e porque ainda se sentia socialmente perra pelos vários anos de um casamento atrofiante. Ele rejeitou o convite com uma desculpa mal inventada e ela nunca mais lhe telefonou.

Foi nos meses a seguir que descobriu que, por trás da enorme alegria dos filhos, há um também enorme fantasma de solidão. É esse fantasma que agora, parasitando a luz do Sol, está deitado ao lado dela, e é ele que com jeitinho e tempo lhe vai pedir para se tapar com os lençóis. Talvez ela se tape e talvez, por uns segundos em que se consiga aquecer nele, acredite outra vez em qualquer coisa.

12 comentários:

Anónimo disse...

Adoro suas crônicas. Quando eu crescer, quero escrever igual a você :-)

Tenho refletido ultimamente sobre a maternidade e este texto remente a estas reflexões: vale a pena mesmo ser mãe? Enquanto a idade não chega, ponho-me a pensar a decisão.

Um beijo!

Padme Amidala disse...

"Foi nos meses a seguir que descobriu que, por trás da enorme alegria dos filhos, há um também enorme fantasma de solidão."

É muito mais comum e doloroso do que se possa pensar...

Parabéns pelo blog :-)

Ivar C disse...

gigi, ser mãe, acho eu, é uma vontade biológica. o que se calhar precisamos de mudar é a nossa organização social e política que, em abono da verdade, é difícil para grande parte das mulheres. :)

padme amidala, obrigado... eu sei que é, sim... em Portugal é uma realidade bem presente. :)

**Gi** disse...

Sim, com certeza. Por isso esta dúvida.

Mas, pra mudar tudo isso... Sei não. É possível mudar as escolhas individuais, mas não um sistema inteiro. Do jeito que está, não.

Beijos!

Ivar C disse...

Giovana, eu quero mudar o sistema inteiro... e acredito que é. já aconteceu antes... :)

Red disse...

:,)

Closet disse...

adorei este texto...mas incomodou-me bastante, confesso... arranja um happy end para ela please!

Ivar C disse...

closet, eu até acho que o final é feliz... :)

Ventania disse...

O teu bloque tem coisas giras. E depois tem estas. Boas.

Ivar C disse...

ventania, obrigado. :)

Xana disse...

concordo com o ultimo comentario.
adorei o teu texto! por momentos esqueci-me que era o teu blogue que lia.
e concordo que o final é feliz! Sabe tão bem sentir o conforto do lençol depois de uma separação...aquele sopro de esperança que cresce é delicioso!

Ivar C disse...

xana, :)