conversa 1974
- Quem é que acabou com quem?
A Madalena perguntou-me isto e eu não lhe respondi. Não que não soubesse a resposta, mas hesitei em dizê-la nem sei bem porquê. Tinha-me encontrado com ela num café da cidade para lhe devolver uns livros e receber de volta uns cd's emprestados e, assim como que não quer a coisa, disse-lhe que dois amigos comuns tinham entrado no processo de divórcio. Perguntou imediatamente quem tinha acabado com quem.
Eu tinha pedido um donut e uma bica. Não que eu costume comer donuts (na verdade, foi a primeira vez na vida que comi um donut comprado num café e não num supermercado), mas naquele momento, assim que os vi em exposição, fiquei com uma vontade inexplicável de dar uma dentada num. Ela, como se quisesse sustentar o seu aspecto frágil, tinha apenas um chá verde à frente.
- Nem sei bem. - respondi. - Na verdade acho que isso é indiferente.
Sempre achei fantástica a forma meticulosa como a Madalena bebe chá. Consegue realizar todas as operações sem verter um único pingo, como se aquela operação de levantar a tampa do bule metálico e encher a chávena fosse uma coisa de todos os dias. Para mim, pelo menos, não é. Verto sempre uma parte significativa da infusão. Acho mesmo que é por isso que evito beber chá nos cafés. Ela deu um gole e olhou-me durante alguns segundos.
- Não é nada indiferente. - disse.
- Claro que é! - respondi. - Estão a divorciar-se um do outro, por isso ambos estão tristes.
Ela tornou a dar um gole, desta vez mais curto. Pousou a chávena e sorriu-me complacente. Detesto quando ela me sorri assim. Fica ainda mais bonita do que já é normalmente, mas já sei que a seguir me vai explicar qualquer coisa como se estivesse a falar com um miúdo de dez anos.
- Ambos estão tristes, é verdade, mas há um que está triste e a olhar para o futuro, enquanto outro está a olhar para o passado. É essa a diferença entre quem põe fim a uma relação e quem não põe, mesmo que ambos já se sentissem mal há algum tempo...
- Passado?! Futuro?! - Perguntei, começando a dar algum interesse à conversa.
- Sim. Quem tem a coragem de pôr fim a uma relação é porque está a olhar com algum optimismo para o futuro. Quer mudar de vida porque não se sente bem. Por outro lado, aquele que é rejeitado fica a olhar para o passado e a tentar descobrir o que é que correu mal. É um processo mais doloroso, normalmente.
Comi o donut todo antes de regressar às palavras. Sabia exactamente o que ela me ia responder quando eu lhe dissesse que tinha sido a mulher a pôr fim à relação, e que o homem estava em casa transformado num trapo velho. Ia fazer conjecturas de género, demonstrando por a mais b que a mulher é sempre quem toma a iniciativa precisamente porque é a mais inconformada. É ela quem pega o destino pelos cornos e o muda consoante a sua vontade. Sabia que ela o ia afirmar e dar-me a mim mesmo, e a ela, como exemplos.
- Foi ela que acabou com ele. - confessei.
Ela calou-se. Tornou a fazer aquele sorriso que eu Amo e detesto.
- Gostei muito da tua música. - disse. - Gostaste dos livros?
Abanei a cabeça afirmativamente. Vi-a levantar-se, despedir-se de mim com um aperto de mão, deixar duas moedas em cima da mesa para pagar o chá e ser engolida pelo mundo lá fora. Também a admiro por isso, por fazer silêncio quando eu já sei o que ela vai dizer.
10 comentários:
Mulheres... seres inteligentes!
Ahahahahahahahahahahha :P
eli, há uma inteligência feminina, se calhar... :)
Os homens e as mulheres!!
Eu sei quase sempre o que se passa na cabeça do meu unido de facto (versão light de casados, nem obrigações legais nem direitos , se lhe der uma travadinha os filhos cuidam ...).Á criatura não lhe passa pela cabeça, uma pequena parte do que me vai pela minha complexa mente. Tadinho
Faz todo o sentido, sim e eu que nunca tinha pensado nisso.
Muito bem explicado. E lá está, os silêncios valem mais do que muitas palavras...
Concerteza que há... essa inteligencia de que falas:P
Concordo com a tua amiga, quem termina vê o futuro com optimismo. Vê-se um futuro melhor... ainda que o início seja doloroso.
anónima, isso é tudo Amor, suponho. :)
carmo, nem eu... nem eu... :)
lily, às vezes valem. :)
eva maria, não há dúvida nenhuma. :)
lilith, é essa a visão da coisa, sim. :)
Também não consigo encher uma chávena de chá sem verter parte :)
redonda, óptimo, só para eu não pensar que o único. :)
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