12.21.2012

a segunda impressão

De vez em quando acontece interessar-me muito por uma mulher. Utilizo o verbo interessar sempre que conheço alguém por quem não me apaixono de maneira nenhuma mas por quem, de forma muito regular, me vou imaginando apaixonado. Normalmente isto acontece-me por um facto muito concreto, uma característica específica da mulher que pode ser física ou psicológica, e adoro que me aconteça porque, na verdade, é muito confortável estar interessado por alguém sem qualquer paixão envolvida.
Apaixonado, perco muitas vezes o discernimento. O coração bate mais depressa e os pensamentos tropeçam nas palavras que me vão saindo da boca. Há uma sensação de euforia que se vai misturando com a de frustração, o que pode dar um cocktail emocional explosivo. Assim, apenas interessado, consigo apreciar a coisa com a Razão e, em abono da verdade, adoro isso. Adoro isso, claro, quando já estou apaixonado de forma correspondida e por isso não tenho a necessidade de me apaixonar mais.
Uma vez interessei-me por uma mulher sem estar apaixonado por ninguém. Vivia sozinho e, para ser muito sincero, acho que foi a única vez que me aconteceu. Foi estranho porque o que me interessou nela foi perceber que era uma mulher desprendida de tudo. Conheci-a numa festa em casa de uns amigos comuns, enquanto abria o frigorífico para tirar uma bebida e, como ela estava logo atrás de mim, lhe perguntei se queria cerveja ou vinho branco.

- Qualquer coisa! - disse estendendo-me um copo vazio de plástico.

Servi vinho branco aos dois e passámos o resto da noite a conversar numa enorme varanda que a casa tinha. Para além de desprendida, ela tinha uma surpreendente resistência ao álcool, de tal forma que bebemos uma garrafa de vinho cada um e ela, pelo menos aparentemente, ficou na mesma. Enquanto bebíamos e conversávamos, reparei que ela conhecia quase toda a gente naquela festa, onde deviam estar umas cinquenta pessoas, enquanto eu conhecia apenas três ou quatro.
Foi esse facto que fez com que ficássemos amigos. Quando lhe disse que ela era muito popular, ela respondeu que tinha tantos amigos que apenas costumava ficar sozinha na noite de Natal, o que achava óptimo. Ora, por essa altura também eu passava todas as noites de Natal sozinho, normalmente a jogar computador até de manhã.
Na noite de Natal, todas os nossos amigos estão com as suas famílias. Eu e ela, por assim dizer, estávamos divorciados e não tínhamos família para isso, por isso acabámos por combinar passar juntos a noite de vinte e quatro de Dezembro, que seria daí a três ou quatro dias. Passei assim, nesse ano, o Natal com uma mulher que mal conhecia.
Para além dum bacalhau assado com batatas e couves cozidas, enchi o frigorífico de vinho branco e esperei que ela chegasse para jantar, o que aconteceu à hora prevista. Abri a porta, ela entrou, cumprimentou-me e entregou-me uma prenda que me fez sentir um bocado envergonhado, pois eu não lhe tinha comprado nada.  Era um moleskine.
Durante o jantar reparei em coisas dela em que não tinha reparado na festa. Por exemplo, que tinha um sinal no queixo e que uma das suas orelhas estava rasgada na parte inferior, como se alguém tivesse ali chegado e cortado a pele como se fosse uma folha de papel. Era magra e bastante bonita, de cabelos curtos muito pretos que contrastavam com a pele muito branca.
Quando acabámos a sobremesa ela fez-me um pedido muito estranho. Pediu-me que lhe indicasse uma cama, pois estava muito cansada e precisava dormir, e que escrevesse no moleskine, durante o sono, tudo o que pensava dela. Obedeci sem perguntar porquê.
Quando ela acordou já eu estava com o livro fechado e a caneta no bolso, bebericando um pequeno copo de uísque. Ela sorriu-me.

- Escreveste alguma coisa?
- Sim... como te conheço mal, chamei ao texto "a segunda impressão". A primeira impressão foi a que tive quando te conheci. Queres ler?
- Não! - respondeu ela sem hesitar.
- Não?!
- Não. Pedi-te que escrevesses sobre mim para que um dia mais tarde haja a possibilidade de leres isso e de te lembrares desta noite. Convenhamos que passar o Natal com uma mulher acabada de conhecer é estranho, e é essa a minha prenda para ti: uma memória única. Nunca fizeste isso com mais ninguém, pois não?

Arrumei o moleskine num armário, entre vários livros esquecidos e confortados pelo pó. Hoje, alguns anos depois, abri-o de novo pela primeira vez. Li o texto e regressei a essa noite, que foi tão estranha quanto agradável. Depois tornei a fechá-lo e coloquei-o no mesmo sítio. Foi a minha prenda de Natal, essa memória. A segunda impressão.

13 comentários:

Olga disse...

Gostei :)

Unknown disse...

Uou... simplesmente brutal!
Estou sem palavras.
Eu também sou assim, de impulsos.
E já fiz coisas parecidas ...
É tao bom haver aquele interesse a que eu chamo ligaçao sem sabermos porque e nao nos interrogarmos sobre isso e apenas aproveitar :)

Ivar C disse...

olga, obrigado. :)

eva maria, obrigado. é isso, sim. :)

Be disse...

E de repente, sem razão aparente aquela lembrança que assoma a memória e sorrio porque não preciso de mais nada! :)

redonda disse...

Ela deve ser mesmo uma pessoa especial. E gostei muito deste texto.

Afrodite disse...



Nesta quadra festiva venho desejar um

……………¨♥*✫♥,
………,•✯´………´*✫
…….♥*……………. __/\__
.….*♥…………….....*-:¦:-*
…¸.•✫…… FELIZ NATAL!!!!
...*♥...........................¨♥*✫♥........
.,•✯´................................,•✯´.......

...............................Muitos beijinhos (^^)

Ivar C disse...

na mesma, :)

redonda, obrigado. :)

afrodite, obrigado. beijinho. :)

Anónimo disse...

E agora como é que eu vou dormir de noite sem saber qual foi a segunda impressão? Caraças pá! :)

Feliz Natal!

Eli disse...

Estranhamente, eu sou quase uma dessas personagens dessa história...

Ivar C disse...

anónimo, feliz Natal. :)

eli, quando lemos, temos essa tendência. eu, pelo menos, tenho. obrigado. :)

Fatyly disse...

São essas pequenas grandes coisas que ao longo da nossa vida podemos dar a nós próprios.

És um ser humano genial que transporta para a escrita tanta coisa que ultrapassa as prendas XPTO que se vendem pelo mundo!

ADOREI!

Beijos

Fatyly disse...

Nunca disse isto neste mundo de cabos, mas a talhe de foice partilho contigo e com quem aqui vem:

No dia em que deixei a minha terra até hoje: enchi com a minha filha mais velha na altura com 6 meses um pequeno frasco pequeno com areia da minha terra.
Todos os anos, no Natal e no dia em que faço anos que está quase, datas que gosto tanto...abro, cheiro, choro e "ponho-o no mesmo lugar"...e

não consigo dizer mais nada porque não vejo as teclas!

Beijocas e um bom dia de Natal com afecto e carinho

Ivar C disse...

fatyly, obrigado pelo teu testemunho. gostei de o ler. beijinho :)