Quem é a Sónia?
Imagino que a Sónia morreu. É uma das coisas que costumo fazer quando estou
triste e me sento ao balcão dum bar a beber uísque como se não
houvesse amanhã, imaginar que alguém de quem eu gosto muito acabou
de morrer. Depois sofro, e embora tenha plena consciência de que
estou a sofrer devido a uma mentira que eu próprio acabei de
inventar, sofro realmente. Sofro tanto que acabo por chorar.
Pois
bem, a Sónia morreu e as minhas lágrimas caem no balcão gasto do
bar como uma chuva triste. A empregada, uma mulher que aparenta ter
uns dez anos a menos do que eu, pega no meu copo vazio e pergunta-me
se quero outro. Que é oferta da casa, diz com uma voz tão macia
quanto uma cama com lençóis lavados e passados. Eu aceno que sim
com a cabeça e sorrio-lhe.
Adoro
mulheres que amaciam os modos e a voz quando vêem um homem triste.
Aprendi, durante os meus quarenta anos de vida, que são o tipo de
mulheres com as quais um homem não pode contar, porque quem amacia a
voz dum momento para o outro também é capaz de a endurecer. Mas
adoro-as na mesma. Com uma mulher de voz macia, sou capaz de passar
uma noite inteira mesmo que essa noite me pareça uma eternidade.
Estas
mulheres são assim, tão próximas e distantes de mim que ao pé
delas não consigo ser muito mais do que um snobe idiota. Embora já
esteja num estado adiantado de embriaguez e quase sem dinheiro, a
seguir vou pedir outro para lhe demonstrar que só aceitei o uísque
de oferta porque realmente me apetecia bebê-lo. No fim pago a conta
e deixo gorjeta, apesar de provavelmente não me sobrar dinheiro para
comer o resto da semana.
Os
últimos clientes, uns tipos que passaram a noite com risinhos
estúpidos numa mesa do canto, estão agora a sair. Deixam-me sozinho
com a empregada e as minhas lágrimas param. Nem outra coisa podia
acontecer, comigo na presença exclusiva duma mulher tão bonita.
Agora sinto-me feliz, mas a verdade é que não posso sorrir. Uma
mulher pode certamente gostar dum homem triste ou dum homem feliz,
mas detesta sempre um que seja as duas coisas.
Cheguei
ao ponto em que a voz se enrola na minha língua e o meu raciocínio
se atola neste pantanoso terreno de desejo e uísque. De dois em dois
minutos endireito o corpo encurvado e penso em qualquer coisa para
dizer à única mulher da minha noite, uma empregada de bar que agora
acende um cigarro pensativo e silencioso. Imagino-a como minha
mulher, imagino-me como homem dela. Talvez estivesse ali no mesmo
sítio, se fosse assim, mas sóbrio e a ter sexo com ela. Ambos
apoiados no balcão e a suar.
O
meu olhar cansado pousa no corpo dela, como um abutre que se prepara
para devorar um cadáver. Mas eu não preparo nada. Ela pede-me que
pague e é o que eu faço. Depois saio.
Na
cidade todos têm onde passar a noite. Até os insectos que já se
instalaram no calor dos candeeiros das ruas, até os cães que já se
aninharam junto a uma árvore, até um sem abrigo que me olha
desconfiado a partir dum vão de escada. Menos eu. Imagino que a
Sónia me chama. É uma das coisas que costumo fazer quando estou
só, imaginar que alguém de quem gosto muito me chama.
Quem
é a Sónia?
11 comentários:
É pá! se n fosse irónico seria terrivelmente triste...
Admito que me arrepiei.
que triste bagaço......
beijinho grande
E mantem-se a questão...Quem é a Sónia?
=) Bom dia!
Oh mãe do céu... e elas caiem... detesto gajos lamechas...
É o conjunto de todos os teus fantasmas...que quando povoam dão asas aos pensamentos sóbrios ou não...nos atolam e atrofiam!
Nada que não passe...mas até passar é bem lixado.
80% para não dizer 90% dos velhos que sofrem de insónias...faz-lhes a mesma pergunta...e terás mil versões de "Sónia".
Foi o que entendi e desculpa se estarei enganada, mas adianto que algo escrito por um "grande escritor como tu" é feito num sentido mas lido por dez poderá ter dez sentidos diferentes:)
Já o imprimi e lá vai mais um!
Credo que lamuria!
A Sónia só pode ser a tua consciência!
:)
A Sónia é provavelmente a mulher que buscas
e que já existe no teu inconsciente!
naja, é ficção. :)
s*, :)
quase nos "entas", beijinho. :)
li menina mulher, bom dia. :)
maria santos, caiem?!
fatyly, sim... e por cem terá cem sentidos. ainda bem que é assim.obrigado. :)
holy, é ficção. apeteceu-me. :)
carmo, :)
alexandra, eu não busco nenhuma... :)
Nunca mais houve mais crónicas de engate. Que se passa?
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