uma mulher por trás de qualquer história
Comecei a habituar-me às histórias do Afonso, aquelas que ele me contava durante todos os almoços, de segunda a sexta, entre uma garfada de arroz à portuguesa ou massa com carne. As histórias dele não variavam muito, os pratos do dia daquele restaurante improvisado numa pastelaria venezuelana também não. Ele sentava-se e falava de mulheres imaginadas, eu sentava-me a ouvi-lo e a almoçar. Às vezes sorria, outras vezes não.
Uma vez chegou a arfar. Sentou-se na cadeira à minha frente com o impacto dum tijolo e disse-me que eu não ia acreditar no que lhe tinha acontecido. Pois não, não ia. Mas mesmo assim queria ouvir. Uma tal de Ana tinha-se sentado ao lado dele no autocarro, no regresso a casa, e adormecido no seu ombro. Ele, para não a acordar, deixou-se ir algumas paragens para além da dele. Quando ela acordou e ele lhe contou isso mesmo, convidou-o para passar a noite em casa dela. E ele a olhar para mim fixamente, à espera dum sinal qualquer que indicasse que eu acreditava naquilo tudo. E eu a responder que ele era um homem cheio de sorte. Ele sorria quase sempre. Às vezes não.
Sempre soube que o Afonso era um homem solitário, principalmente porque eu também o era. A diferença é que ele vivia sozinho, sem mais ninguém em casa. Eu vivia sozinho, com a minha mulher de há mais de vinte anos em casa. Éramos os dois uns solitários, mas ele tinha espaço para imaginar todos o tipo de engates e romances. Eu não. Invejava-o.
Outra coisa que nos unia era uma enorme incapacidade de sedução. Todos os sábados à noite saíamos juntos e íamos aos mais concorridos bares da baixa da cidade. Íamos bebendo e desejando que uma mulher qualquer se sentasse na nossa mesa, por qualquer motivo que fosse. Mas nunca nenhuma se sentou, e eu ficava a ouvir as histórias dele ou, ainda pior, a falar de futebol. Depois voltávamos para casa, silenciados perante a terrível evidência de que a nossa vida era uma monotonia, e com o céu estrelado a rir-se de nós.
Foi numa dessas noites, já depois de umas cinco ou seis cervejas cada um, que ele deu um salto na cadeira. Estava uma mulher sozinha no balcão, de um moreno doce e cabelos suaves. Era bonita, e se já de si parecia inatingível, o facto de estar a beber um cocktail colorido de que eu nem o nome sabia ainda a tornava mais impossível. É a Ana, disse o Afonso mostrando um nervoso miudinho na sua voz acanhada.
- Aquela que te convidou para dormir em casa dela?! A do autocarro?! - Perguntei incrédulo.
- Chiuuuu... fala baixo! - e vi que uma dor qualquer se apoderara da cara dele.
Voltámos para casa como sempre, sozinhos e com um profundo e amargo sentimento de abandono. A Ana existia mesmo. De facto, tinha adormecido no ombro dele numa viagem de autocarro, e ele tinha mesmo saído algumas paragens depois para não a acordar e aproveitar aquela sensação única de ter um anjo a dormir ao lado. Confessou-me nessa noite que tinha voltado a pé, debaixo duma chuva forte e fria, aquecido sempre pela sensação do toque do sono dela. O resto é que tinha sido inventado por ele...
Estou habituado às histórias do Afonso. Aquelas que ele me conta todos os dias, de segunda a sexta, entre uma garfada de arroz à portuguesa ou massa com carne. Quando ele não vem eu fico apreensivo. Gosto das histórias dele. Sei que, por trás de cada mentira que diz, há sempre uma mulher verdadeira. Às vezes é uma que lhe pediu ajuda no supermercado para tirar uma lata de conserva da prateleira mais alta, outras vezes é uma que lhe pediu para apagar o cigarro num restaurante qualquer. Hoje, por exemplo, foi uma estrangeira que lhe perguntou uma indicação na zona histórica da cidade.
Sei que, como eu, o Afonso é um solitário e um incapaz de Amar. É por isso que cada mulher que passa por ele se transforma numa qualquer história de Amor. Invejo-o por isso. Admiro-o por isso. Até porque isso também é Amar. E não há melhor forma de dizer uma verdade do que inventando-a.
Uma vez chegou a arfar. Sentou-se na cadeira à minha frente com o impacto dum tijolo e disse-me que eu não ia acreditar no que lhe tinha acontecido. Pois não, não ia. Mas mesmo assim queria ouvir. Uma tal de Ana tinha-se sentado ao lado dele no autocarro, no regresso a casa, e adormecido no seu ombro. Ele, para não a acordar, deixou-se ir algumas paragens para além da dele. Quando ela acordou e ele lhe contou isso mesmo, convidou-o para passar a noite em casa dela. E ele a olhar para mim fixamente, à espera dum sinal qualquer que indicasse que eu acreditava naquilo tudo. E eu a responder que ele era um homem cheio de sorte. Ele sorria quase sempre. Às vezes não.
Sempre soube que o Afonso era um homem solitário, principalmente porque eu também o era. A diferença é que ele vivia sozinho, sem mais ninguém em casa. Eu vivia sozinho, com a minha mulher de há mais de vinte anos em casa. Éramos os dois uns solitários, mas ele tinha espaço para imaginar todos o tipo de engates e romances. Eu não. Invejava-o.
Outra coisa que nos unia era uma enorme incapacidade de sedução. Todos os sábados à noite saíamos juntos e íamos aos mais concorridos bares da baixa da cidade. Íamos bebendo e desejando que uma mulher qualquer se sentasse na nossa mesa, por qualquer motivo que fosse. Mas nunca nenhuma se sentou, e eu ficava a ouvir as histórias dele ou, ainda pior, a falar de futebol. Depois voltávamos para casa, silenciados perante a terrível evidência de que a nossa vida era uma monotonia, e com o céu estrelado a rir-se de nós.
Foi numa dessas noites, já depois de umas cinco ou seis cervejas cada um, que ele deu um salto na cadeira. Estava uma mulher sozinha no balcão, de um moreno doce e cabelos suaves. Era bonita, e se já de si parecia inatingível, o facto de estar a beber um cocktail colorido de que eu nem o nome sabia ainda a tornava mais impossível. É a Ana, disse o Afonso mostrando um nervoso miudinho na sua voz acanhada.
- Aquela que te convidou para dormir em casa dela?! A do autocarro?! - Perguntei incrédulo.
- Chiuuuu... fala baixo! - e vi que uma dor qualquer se apoderara da cara dele.
Voltámos para casa como sempre, sozinhos e com um profundo e amargo sentimento de abandono. A Ana existia mesmo. De facto, tinha adormecido no ombro dele numa viagem de autocarro, e ele tinha mesmo saído algumas paragens depois para não a acordar e aproveitar aquela sensação única de ter um anjo a dormir ao lado. Confessou-me nessa noite que tinha voltado a pé, debaixo duma chuva forte e fria, aquecido sempre pela sensação do toque do sono dela. O resto é que tinha sido inventado por ele...
Estou habituado às histórias do Afonso. Aquelas que ele me conta todos os dias, de segunda a sexta, entre uma garfada de arroz à portuguesa ou massa com carne. Quando ele não vem eu fico apreensivo. Gosto das histórias dele. Sei que, por trás de cada mentira que diz, há sempre uma mulher verdadeira. Às vezes é uma que lhe pediu ajuda no supermercado para tirar uma lata de conserva da prateleira mais alta, outras vezes é uma que lhe pediu para apagar o cigarro num restaurante qualquer. Hoje, por exemplo, foi uma estrangeira que lhe perguntou uma indicação na zona histórica da cidade.
Sei que, como eu, o Afonso é um solitário e um incapaz de Amar. É por isso que cada mulher que passa por ele se transforma numa qualquer história de Amor. Invejo-o por isso. Admiro-o por isso. Até porque isso também é Amar. E não há melhor forma de dizer uma verdade do que inventando-a.
17 comentários:
Muito bom, excelente texto. Conteúdo, mensagem, estrutura, surpresas, bem escrito. Delicioso ler-te assim! Muitos parabéns Bagaço.
MM
mm, obrigado. :)
Gosto de "estórias" e de Afonsos. Gosto de mulheres e de desencontros.
Gosto de amar e ser amado
é tão bom, mesmo sendo usado
Abraço ;)
josh gottam, abraço. :)
Adorei o texto, esta lindissimo. Acho que nao faz mal nenhum ter a capacidade de fechar os olhos e tecer uma realidade alternativa, em que o momento de seducao acontece, em que nao ha mal nenhum e tudo flui com naturalidade. Os sonhos tambem fazem parte da vida, e se isso o fizer sentir menos so, why not?
Estou sem palavras e com uma lagrimazita no canto do olho. Que belo texto.
:)
Fico sempre com a sensação que não te encontro. Deve ser culpa das invenções.
O seu amigo Afonso faz uma história com cada pequeno episódio da sua vida e preenche-o um pouco mais com a sua imaginação.
Obrigada por partilhar as suas (e as dele) histórias connosco.
Adoro.
Ana
Há várias maneiras de Amar ... e não creio que sejas um incapaz de Amar ...
Mais uma vez, rendida ao texto!! =)
Gosto! Gosto da forma como escreves...Parabéns...
Vera
liliana costa, não, não faz mal nenhum. aliás, acho que às vezes é um questão de sobrevivência. :)
carmo, obrigado. :)
cycle, eu não me encontro também. e quando estou quase, escondo-me. :)
sexy couple, conheci o meu amigo Afonso apenas ontem, ao escrever esta crónica. :)
sintonia, incapaz não me sinto, de facto. mas sinto-lhe todas as dificuldades inerentes. :)
vera, obrigado. :)
Escondes-te atrás da história ou das mulheres?
cycle, de ambas, acho eu. Das mulheres escondem-se todos os homens. pelo menos de vez em quando. :)
Essa capacidade de inventar é uma forma de sonhar, mas há Afonsos e Afonsos que também ouvi muitos(as) mas detestava quando tocavam ou cheiravam a gabarolice.
Formas de viver!
fatyly, de gabarolice também não gosto. :)
Afonsos e Afonsas... na verdade, não são eles os mais reais?
letra S, vão sendo, sim... :)
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