3.13.2012

respostas a perguntas inexistentes (198)

o tempo ainda está a contar

Ela acabou de chegar. Senti-a a pousar os sacos das compras do lado de lá da porta, escolher e rodar lentamente a chave na fechadura, pegar de novo nos sacos e entrar. Foi para a cozinha, arrumou tudo, e depois sentou-se à janela com uma chávena do chá que sobrou do pequeno-almoço. Hoje ainda não trocámos palavra, e na verdade não sei se isso é bom ou mau.
Às vezes procuro nela a menina por quem me apaixonei, há mais de vinte anos atrás, e não encontro. Mas quando procuro em mim o rapaz dessa paixão, também não dou com ele. É como se cada um de nós tivesse seguido a sua vida em direcções opostas, mas sempre fechados no mesmo T2 de um bairro operário da cidade.
E eu levanto-me, pouso o jornal aberto no chão ainda com metade das palavras cruzadas por fazer, e vou também à cozinha. Abro um armário e fecho-o logo a seguir, depois outro, como se procurasse alguma coisa que não uma palavra dela. Um sinal de vida ou de nós. Do que chegámos a ser.

- Comprei-te café! - Diz ela.
- Obrigado.

A janela da cozinha dá para a rua onde alguns miúdos jogam com uma bola vazia, e depois dá para outras janelas. Muitas. Fico com a sensação de que vivo numa prisão de janelas, que o mundo nos decidiu encerrar aqui para desistirmos lentamente da vida. Acho que ela está a pensar o mesmo que eu, a fazer as mesmas perguntas. Quantas pessoas nessas janelas passam os dias sem dar por eles? Quantas pessoas ainda se Amam e fazem Amor todas as manhãs de Domingo? Quantas pessoas?
Ouço a pastilha romper-se dentro da máquina e espero que o café escureça o fundo branco da chávena. Um curto, portanto, que eu nem sequer queria nenhum. Sento-me ao lado dela e finjo dar um gole do qual nem chego a sentir o sabor.

- E agora?

Sinto-a sorrir e lembro-me do primeiro sorriso que lhe vi, aquele que parecia que nunca se ia desfazer nos seus lábios de mel. E nos meus também, acho eu. E ela a perguntar-me se o nosso Amor era para sempre e eu a responder que sim. Que mais podia ser, naquele momento em que nos apaixonámos pela primeira vez? Que mais podia ser, naquele Big Bang dum mundo novo? Era como se o tempo e o Amor fossem infinitos.
Entrelaçamos os braços como se quiséssemos dar um nó impossível com eles, e ela pousa a cabeça no meu ombro. Em silêncio. Aí está, um pouco do que nós já fomos. E estamos a mostrá-lo ao mundo todo, a dizer que nesta janela as pessoas ainda se Amam, mesmo que seja um Amor em forma de resistência. O tempo ainda está a contar. O Amor também.

18 comentários:

Pipoca dos Saltos Altos disse...

E que conte por muito tempo. :)

Sendyourlove disse...

uau!!!!!
lindo!

Anónimo disse...

Este post faz-me lembrar uma canção de sérgio godidnho que diz:"o amor dura, se durar, enquanto dura" :)

Filipa

Carmo disse...

Lindo, lindo, lindo, absolutamente brilhante, escrito com uma simplicidade absorvente e tão real.

kiss

Anónimo disse...

Muito bom.

tiago leal disse...

Muito bonito!

viagensnomeucaderno.blogspot.com

Fatyly disse...

Tocante e comovente...e não consigo dizer mais nada!

Ivar C disse...

pipoca dos saltos altos, exactamente. :)

sendyourlove, obrigado. :)

filipa, poia faz... :)

carmo, obrigado. :)

anónimo, obrigado. :)

tiago leal, obrigado. :)

fatyly, obrigado. :)

Conto de Fadas disse...

E tudo vai dar certo. :)

Conto de Fadas disse...

E tudo vai dar certo. :)

capitão disse...

Gostei!
História real ou imaginada, com um final feliz para não deixar amargo na boca!

Ivar C disse...

conto de fadas, :)

capitão, obrigado. :)

Sintonia disse...

"Às vezes procuro nela a menina por quem me apaixonei, há mais de vinte anos atrás, e não encontro. Mas quando procuro em mim o rapaz dessa paixão, também não dou com ele."

"E estamos a mostrá-lo ao mundo todo, a dizer que nesta janela as pessoas ainda se Amam, mesmo que seja um Amor em forma de resistência. O tempo ainda está a contar. O Amor também."

e quando passam vinte anos ou mais e as coisas estao assim, dá mesmo vontade de seguir em frente e amar quem temos connosco!

por exemplos destes, e outros mais "chegados" que ainda se acredita no "para sempre" ..

Ivar C disse...

sintonia, há sempre uma metamorfose no Amor de duas pessoas, sim. Às vezes para um fim, outras vezes para um continuidade diferente. Mas não tem que ser sempre uma continuidade. :)

Gasper disse...

Adoro! Nós mudamos e consequentemente o amor também

Ivar C disse...

gaspar, exacto. :)

Malena disse...

Às vezes, um gesto pequenino faz renascer o Amor. :)

(Sou uma romântica!) :))

Ivar C disse...

malena, acho que fazes bem em ser. :)