6.03.2009

crónicas de engate (6)

margens

Há bocado fez amor sem realmente o fazer. Deixou-se estar quieta enquanto ele a abraçou, lhe acariciou os seios e depois, devagar, lhe escalou o corpo com beijos e um pénis estranhamente erecto. Com o tempo os beijos dele foram perdendo o sabor, pensou ela enquanto contava os traços de luz desenhados na parede. Ele veio-se... e depois foi-se, engolido pela prescrição que o obriga a ir trabalhar todos os dias às nove da manhã.

Enfraquecida, a luz vai morrendo devagar na parede do quarto depois de ter passado pelos buracos da persiana. Era tão bom que o dia de hoje pudesse ser diferente dos outros. Mas não é, e depois desta contemplação da morte natural dos raios de Sol, o dia dela não será muito diferente duma receita médica qualquer que manda tomar medicamentos a horas exactas.

Há uma normalidade nesta vida que não pode ser normal. É a normalidade de casar, ter filhos, comprar uma casa e talvez um carro sem haver um depois. É como se esse fosse o último estágio da vida e, talvez por isso, ela tenha sorrido tanto no dia em que se casou. Eram os últimos sorrisos. Depois as conversas embriagadas de amor transformaram-se em discussões sobre a conta em que deve cair a factura da luz e do gás, o sonho de ter filhos transformou-se numa prisão cheia de fraldas sujas e choros de bebé a meio da noite e, por fim, os quarenta e tal canais por cabo substituíram as longas noites passadas com os amigos.

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Ele já chegou ao escritório mas ainda não ligou o computador. Não consegue deixar de pensar na mulher que lá fora, enquanto o semáforo para peões estava vermelho, olhou para ele do outro lado da rua. Depois cruzaram-se na passadeira e sorriram um ao outro, ela com um brilho nos olhos de amêndoa e ele com timidez. E por falar em passadeira, foda-se, a vida não tem sido mais do que isso: uma passadeira entre duas margens: a da casa e a do emprego. Tudo o resto é passagem. Tudo o resto é paisagem.

Ela já aqueceu o leite do miúdo no microondas durante doze segundos na potência máxima, já lavou os lençóis onde ele mijou mais uma vez durante a noite. Já os pôs a secar e já tirou do frigorífico a carne para descongelar até à hora do jantar. Só ainda não se ligou a ela mesma. Não consegue deixar de pensar em como a sua vida se transformou apenas numa margem: a da casa, e tudo o resto está na outra margem tão distante.

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Os insectos povoam os candeeiros redondos da rua em órbitas incertas. Incerta é também a noite mas, pela primeira vez, isso sabe-lhes bem. Ele telefonou e inventou uma desculpa qualquer para não ir jantar a casa, ela ganhou coragem e deixou o filho na vizinha. Talvez daqui a pouco se cruzem numa passadeira qualquer e sorriam um para o outro como já não se lembram de o fazer. Talvez até percebam que têm vivido em margens opostas. Talvez... entretanto, a carne em cima da banca da cozinha já está descongelada e esquecida.

54 comentários:

Bichana disse...

Adorei o teu escrito...
è por estas e por outras que eu fujo do casamento.

Stiletto disse...

Muito bonito! Sentido e simples. Adorei!

Paula disse...

só tu para escreves a realidade cinzenta e monótona de uma forma tão doce...
gosto sempre muito de te ler. acho que nunca me vou cansar.
bjs

Ivar C disse...

bichana, não tens fugir do casamento. tens é que fugir deste casamento... :)

stiletto, obrigado. :)

paula, obrigado. :)

Miepeee disse...

Por existirem tantos casamentos como este e que o numero de divorcios vai aumentando.

gralha disse...

É preciso já ter sido casado para perceber a perigosidade (e realismo) deste cenário.

**Gi** disse...

Fiquei triste :-(

Embora, não tenho deixado de pensar na entrevista que li, nesta semana, postada no meu blog:

www.dancardancardancar.blogspot.com

Você já a leu? Gostei muito! Se tiver um tempinho, dê uma olhada :-)
A Rita realmente me fez pensar...

Beijinhos!

Hanokh disse...

triste...

espero saber edificar uma casamento que não seja assim...

Blue C disse...

Já aqui venho há uns tempos... hoj ganhei coragem.
Excelente descrição das muitas vidas anónimas por aí.

C disse...

Caro Bagaço,

Gostaria muito (embora nem faça o meu género) de publicar este texto, na íntegra, no meu blog, devidamente identificado, claro.
É lindo, é cru, é perfeito.

Está bem?

Se não...tudo bem na mesma. Envio por mail.
;)

:p

P.S. - Hoje não vou de 7 para casa. Tenho boleia!

Santiago Mbanda disse...

Eu procuro a aventura e a constante descoberta. Não fujo dum casamento, fujo duma monotonia...
Nada devia ser obrigação, muito menos viver com que se escolheu para isso, por isso devemos mudar as situações, não matando relações e sensações.


;)

Ivar C disse...

miepeee, então ainda bem que aumenta. :)

gralha, sim, isso é verdade... é preciso ter sido já casado. :)

giovana, não é para ficar triste. ao contrário do que possa parecer, é para ficar feliz. :)

hanock, não ponhas tanto peso em cima de ti. a questão não passa só por saber ou não... :)

blue c, obrigado... :)

c, está à vontade. :)

santeago, percebo-te. só não acho que matar ou salvar uma relação seja assim tão importante se o que estiver em causa for o bem estar de cada um. :)

Sendyourlove disse...

... depois de viver assim a descrença é a nossa pior inimiga!

Ivar C disse...

send your love, há uma fase em que sim... mas acho que não é depois, é durante. a questão é precisamente encontrar um "depois". :)

anademar disse...

caro bagaço:
belíssimo! é só isso.

Praga disse...

É um excelente retrato do que se passa à nossa volta e um alerta para que façamos algo quando se instala a monotonia entre o casal.

Convenhamos que nos regemos por tudo o que é material e esquecemos tudo o que há para além disso.

Adorei. :)

CCF disse...

Muito bom este texto. Bem melhor que as conversas, mesmo que tenham sido elas que te proporcionaram o livro e nos façam rir muitas vezes. Investe por aqui, não percas este talento para a escrita.
~CC~

Aida Lemos disse...

Realisticamente triste. E saber que somos nós que fazemos essa realidade e que continuamos, tantas vezes, a assobiar para o lado...
AL

Mefistofeles disse...

Parafraseando a Mafalda (abanando freneticamente a mão direita) "vá lá! pensei que era sopa....", querendo com isto dizer que numa acepção do paradigma (?) feminino não tinha herdado do malfadado casamento uns quilitos a mais proporcionais às horas de cuidados pessoais perdidas.
E como hoje estou para os autores isto soa, sem o lirismo próprio do original, a Flaubert. E na sequência da sua caríssima Madame quem sabe não será a monogamia o problema????

Credo....

Beijos
M

Anónimo disse...

Ficar feliz? Só se for porque o meu casório não é assim! :-D

Beijos!

alfabeta disse...

É bom ser mulher, mas não é fácil, principalmente com homens que só passam o dia no escritório, não é?!

;)

Unknown disse...

Para mim, o grande erro está nas pessoas se juntarem a pensar que é para sempre, a terem-se um ao outro como garantidos. Grande erro. Esta forma de estar na vida pesa toneladas e vai pesando cada vez mais, até nos esmagar. Nada é garantido e nada é para sempre. Já nem falo no amor. Falo na união, na empatia, na amizade. No inovar, no surpreender. No querer manter a chama acesa... Aqui está a formula para a durabilidade de uma relação.
Penso eu de que... :-p

Unknown disse...

Obrigado por teres recolocado o link Bagaço. ;-)
Abraço.

Me, myself and I disse...

Perfeito!

Ivar C disse...

moi chéri, obrigado. :)

praga, obrigado... e é verdade. :)

ccf, isto é mais a minha onda no diário de aveiro e assim... gosto de escrever de tudo. :)

aida lemos, é verdade... :)

mefistofeles, por acaso isto não me soa assim tanto à Madame Bovary... pelo menos não era aí que eu queria chegar. :)

gigi, ou porque se fosse podia deixar de o ser. :)

alfabeta, sim. essa é uma das vertentes. :)

joão pedro, tens razão.... e eu é que te devo uma desculpa. :)

rita, :)

Mena disse...

Qurido bagaço....
Acho que para al´m de muito bonito, este texto está triste cinzento...como alias, é a ralidade...
Acho também, que nós, seres humanos considerados inteligentes, falamos muito e escrevemos mais ainda de formulas magicas para um relacionamento durar, ou das tristezas que sentimos quando nos magoam ou quando magoamos...
Para mim, e contra mim falo, deviamos fazer mais e falar menos.... sentir mais e escrever menos... talvez assim conseguissemos dar alguma cor para além da cinzenta que são os relacionamentos de hoje...
tenho dito!
Beijinhos

angelasoeiro disse...

Em jeito de confissão, vou-te dizer que estava a pensar numa situação bem semelhante!! Este post parece que foi escrito para mim! lol

Salseira disse...

Esta é uma realidade... deprimente...

Há outras...

... a dos casais que discutem o dia inteiro sozinhos ou na presença de terceiros...

... as dos casais em que um pensa que tem uma boa relação e um dia descobre a dura realidade...

Felizmente, existem também outras...

... a dos casais que são companheiros durante uma vida...

... a dos casais que resolvem que o melhor é viverem vidas separadas mas que mantêm um bom relacionamento.

Cabe a cada um procurar aquilo que entende ser a melhor realidade para si próprio.

redonda disse...

Gostei

Ivar C disse...

mena, eu falo muito, de facto, ou melhor, escrevo demais... mas gosto. :)

angela soeiro, lol... bem vinda ao clube. :)

salseira, é verdade. :)

redonda, obrigado. :)

Ana disse...

Olá!
Gosto muito do teu blogue, parabéns!
Pois é, a vida é tramada, e o tempo tem tendência a desgastar tudo, a rotina é lixada, e actualmente é muito dificil fazerhe frnte, a vida é muito agitada, e acabamos sempre por nos esquecermos das coisas em que realmente se deve investir.
Não sou casada, nem pretendo s~e-o tão cedo,por isso não tenho muito conhecimento de causa, mas penso que os casamentos chegam a ess ponto por comodismo das pessoas. Conheço gente que era super divertida, saíam,íam ao cinema, passeavam, mas quando se casaram parece que assinaram um pacto de clausura, deixaram de ser os mesmos, o tal chamado romance desapareceu. parece que quando as pessoas se casamtomam o outro como certo, deixam de investir na relação,penso que um investimento numa relação tem de ser a longo prazo, par a vida toda.
Desculpa a intromissão.
beijo

Ivar C disse...

ana serrano, não peças desculpa . não é uma intromissão e soube-me bem... e sim, o casamento transforma-se às vezes num regime de clausura em que, normalmente, as mulheres partem em desvantagem quando há filhos. há uma pressão social qualquer que torna mais fácil aos homens com filhos recomeçar de novo... :)

Mena disse...

Bagaço...
Não era sobre ti que estava a falar....
Estava a falar sobre exemplos que tenho mais perto e sobre mim mesma...
Não me parece, pelo conhecimento que demonstras, que sejas de fazer pouco...
beijinho

Mefistofeles disse...

:D Não tinha visto a etiqueta... lol
retrato-me...
Isto resulta mm?

reforço: Credo....

M

Anónimo disse...

Esta post é mesmo sentido...só quem já esteve casado sabe como é, infelizmente não há volta a dar, a rotina rebenta com qualquer relação. Bjs
Miau

Carla Santos Alves disse...

Eh pá nao concordo nada com o que li...
A vida vive-se com amor!com paixão!
Ou mais vale estar quieta e sozinha!
Tratm-se dos filhos com amor, com xixis e cocós à mistura, é uma fase que deixa saudades!Vive-se com alegria e amor!

...o resto, bem o resto é para ser vivido com amor, e nao a contar os raios de sol na parede...

Pedro disse...

Aqueles dois, ainda não o sabem conscientemente, mas já estão divorciados, um do outro, da vida que ainda têm!Quanto ao teu último comentário, penso que se poderá tratar também de preconceito social, mais um!
Boa descrição, da vida, em que por vezes se caí!

Abraço

Anónimo disse...

A verdade, pura e dura...

Ivar C disse...

mena, eu sei... é a minha mania de ser materialista. :)

mefistófeles, lol. a etiqueta é só uma gaveta... :)

miau, exactemente. :)

Carla Isabel, isto não é bem para concordar ou não. não é um artigo de opinião, é antes uma descrição duma realidade que, de facto, existe. :)

Pedro, é um preconceito social, sim... mais um... :)

AnNa, em alguns casos sim... :)

Carla Santos Alves disse...

Muito bem...ainda assim dou-me ao direito de nao concordar com essa realidade!

Ou melhor aconselho a quem viva essa realidade a alterá-la!

Como diz o meu irmão Vive-se a vida, vivendo-a!

(não quis de todo transformar o seu post num artigo de opinião, mas quem lê pode ainda assim tê-la!)

Ivar C disse...

carla isabel, sim... pode tê-la e é legítimo tê-la... e eu percebi-a perfeitamente e concordo... a minha questão é sempre entre concordar e conseguir fazê-lo. :)

PaT disse...

Fantástico!

Parabéns!

É por estas e por outras que gosto sempre de "botar" aqui o olho!

E é por estas e por outras que não me passa pela cabeça casar! :P

Mefistofeles disse...

Certamente....

Sou mm eu que por vezes perco a assimilação do sentido que fazem as co-relações e fico em estado de.... "Eureka"... qd finalmente me apercebo delas...

A "gaveta" faz sentido? Certamente...
E resulta? (pergunta anterior), pois... eu comentei não comentei?? (a questão é retórica....)

lolol

beijos

M

maestrina disse...

desculpa lá... então ela usa o microondas para aquecer leite durante doze minutos na potência máxima (que deve ter vazado por todos os lados mais que fervido) e não usa para descongelar a carne?... que confusão... viver à margem dá mesmo cabo da minha cabeça... ups.... acusei-me não foi ;)

o texto ... bem, esse está... qualquer coisa de verdadeiramente tocante... artístico... parabéns!

Ana disse...

Adorei!
Escreves mm mto bem. Prendes...

Ivar C disse...

pat, casar até podes... tens é que ter muito cuidadinho com quem e contigo também. obrigado. :)

mefistofeles, lol... beijos. :)

maestrina, é o que eu faço... aqueço o leite no microondas mas não gosto de descongelar a carne... :)

ana, obrigado. :)

Em ConstantE ConFlito disse...

Infelizmente esta descrição corresponde a muitos casais.
Na minha modesta opinião, as pessoas após o casamento acomodam-se, esquecem-se de namorar, esquecem-se do quanto é bom amar, esquecem-se de surpreender...
O amor é como uma planta, precisa ser regado, precisa ser cuidado, caso contrário, morrerá.
Nunca se esqueçam de viver a vida como se fosse o último dia, porque um dia será mesmo.
Vivam intensamente e lembrem-se de como é bom estarmos apaixonados, e só depende de nós mantermos a chama sempre acessa.

Um bem haja para o seu texto, acredito que obrigará a muitos leitores que se encontrem nesta situação a reflectirem e isso já será um bom passo para mudarem algo, para serem felizes...

Nirvana disse...

Gostei. Realista, triste. Tudo o que não deve ser.
Li algures que o casamento é o maior inimigo do amor. Será? Porquê? Será que por se estar casado aquela pessoa deixa de ser especial para nós? Passa a fazer parte da mobília, como uma mesa, uma cadeira, que estão ali, têm a sua função e mais nada? Será que essa rotina é evitável. Eu acho que sim. E acho muito triste o que escreves aqui. Deprimente. Não o que escreveste, mas a situação que descreveste. Dá que pensar! Viver à margem da vida...

Joao disse...

Bom. Muito bom. O melhor que li esta semana.

Me, myself and I disse...

Bagaço volto a dizer PERFEITO!
Posso publicar este texto no meu blog (devidamente identificado)?
Beijo

Cão Sarnento disse...

Todos os dias, as pessoas fazem escolhas. E, todos os dias, inventam miragens para não terem de aceitar as escolhas que azedaram. A vida não tem de ser um ultracongelado cozido no microondas de dentro para fora. Haverá sempre alguma coisa fresca, e dentro do prazo, para meter no forno enquanto se espera, com água na boca, ao sabor do aroma que preenche o ar de uma ansiosa antecipação.

Ivar C disse...

carla sousa, essa analogia é gira. eu também costumo dizer que prefiro ser namorado a ser marido. :)

nirvana, sim... mas acho que com a idade passamos a saber tratar da mobília. :)

joão, obrigado. :)

rita, claro. obrigado. :)

cão sarnento, é por todos os dias podermos fazer escolhas que há sempre uma saída... :)

K disse...

Opá, gostei tanto que até me faltam as palavras! Gostei da parte de se pensar que não há um depois [do casamento] como se fosse a etapa final - é tão verdade tantas vezes!!! E gostei da doce esperança no fim. Lindo!

Ivar C disse...

k, obrigado. :)